Carlos Nogueira Fino e os seus «outros poemas crioulos»

Podemos passar pelo título deste conjunto de poemas de Carlos Nogueira Fino sem nos determos no reenvio óbvio a um outro que o antecede. Mais difícil, porém,  será evitar o encontro com o adjectivo «crioulos», porventura inesperado num contexto literário como o do autor e por isso mesmo capaz de provocar o  sobressalto do leitor, levando-o a suster o passo e  despertando-lhe  a curiosidade  que abre caminho à interrogação do texto, à descoberta das suas modulações e procedimentos, à descodificação dos seus sentidos, enfim.

Ora, é o próprio poeta que se  adianta  a fornecer-nos algumas  chaves para a  leitura desta sua colectânea (e talvez  mesmo da  obra em termos gerais), com um texto inaugural intitulado precisamente «o inquilino do poema»: a  sua nítida função prefacial estabelece não só a moldura em que é possível situar o poeta   como também a condição do poema, a sua articulação com o real, seja ele o literário ou o geográfico. 

«O inquilino do poema» assume-se, pois, como uma  espécie de autobiografia poética em que a identificação pessoal esbate a distância entre autor e sujeito lírico, aproximando poesia e vida, e onde são visíveis alguns traços que ajudam a (auto)configurar um perfil e uma voz erguidos ao longo de um percurso editorial iniciado já em 1987. Ao mesmo tempo,  esses traços  circunscrevem os contornos daquilo que podemos designar  uma poética pessoal: o poema constrói-se com um discurso em torno da revelação da poesia, das circunstâncias do seu aparecimento (e neste sentido estará próximo do que Natália Correia designa por autogénese), organizando a memória do espaço empírico e  de  possíveis experiências textuais. Dizer as coisas assim é instituir  no interior do poema a problemática do tempo, da sua passagem e do rasto deixado nos objectos,  no poeta  e no texto: a poesia  escreve-se sobre a consciência da perda e das ruínas que sobram de um momento outro e também sobre o sentido de perdição do próprio sujeito lírico. E se a errância  do poeta é um sinal da sua pobreza, do seu despojamento, ela representa  ainda uma deriva inquieta em busca de uma casa-poema que o receba e proteja. Entre a anotação referencial,  empírica,  e o jogo metafórico aquilo que em «o inquilino do poema» se afirma e desvenda é  a condição instável do poeta, a sua própria incerteza,  e  o poema como  lugar de habitar, ou  morada.

É sobejamente conhecido o poema em que Nemésio nos apresenta a poesia como a casa do poeta,  desdobrada ainda em concha – produto segregado do próprio poeta e congregando os seus materiais mais íntimos: sonhos e  lixo,  areia e  ausência, naquela  dualidade humana entre o alto e o baixo, o ouro  e os dejectos,  que o poeta sempre assinalou como elementos fundamentais da  sua poesia. 

Nestes poemas de Carlos Nogueira Fino, a essa perspectiva do poema-casa acresce uma noção e um  procedimento  diferentes: o da poesia como acto de  «ocupação» do poema alheio ou, de outro modo ainda,  a convocação de vozes exteriores  a quem é dada a fala no interior do próprio poema. E não se trata apenas da inscrição inaugural de João Guimarães Rosa que abre estes poemas crioulos e que no seu estatuto  de epígrafe se projecta  sobre eles como uma sombra de nostalgia por tudo aquilo que o tempo tornou irremediável: aqui, essa convocação vai mais longe e instaura como enunciadores do discurso personagens que vêm directamente do romance Grande Sertão: Veredas e agora se fazem  ouvir como sujeitos líricos, numa  situação de transplante para um discurso novo  e para um contexto referencial simultaneamente próximo e diverso.

Efectivamente, o resultado de tudo isso é, em primeiro lugar, o diálogo entre os diferentes «eus», nomeados ou anónimos, a troca de falas e, com  elas, de experiências   e visões do mundo; em segundo lugar, daí resulta a intersecção, talvez mesmo a simbiose, de imaginários  e referentes empíricos múltiplos, criando a instabilidade de sentidos e a diluição de fronteiras semânticas entre o sertão e o Atlântico, entre a imensidão líquida e as extensões do território sólido (a fazer pensar naquele  grão de mar plantado no sertão, como na canção de     Márcio Arantes e Chico César), num processo em que as figuras textuais do romance brasileiro se cruzam com outras do universo lendário madeirense, com alusões ao  imaginário dos textos clássicos.

Assim, o poema constrói-se como um  lugar de isolamento e distância e no interior do qual o persistente trabalho da palavra constitui  um exercício contra o esquecimento e   a desmemória e mesmo contra o silêncio,  nesse diálogo instaurado pelas diferentes falas  que, no seu registo oralizante, estabelecem uma comunicação primeira, interna e anterior àquela que o texto sempre deseja estabelecer com o seu leitor concreto. Que essas falas tenham origem em   espaços diversos constitui o sinal de uma atenção aos textos do  mundo,  para além da pura  citação  literária: no modo como elas são postas em contacto, convivem entre si e carregam diferenciados  traços culturais que se tocam – acabam por instaurar no poema a crioulidade anunciada desde logo no título da colectânea e atestam um acto poético atento àquilo que é uma das características do mundo actual.

                                                                                             Urbano Bettencourt

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