J. H. SANTOS BARROS, POETA

 

Uma hipótese: centrar o discurso na intervenção cultural de J. H. Santos Barros na imprensa dos Açores (antes e depois de 1974), de que o rasto  mais visível será  detectável nos suplementos «Glacial» e «Cartaz», em Angra (anos 60-70)   e «Contexto», em Ponta Delgada (início dos anos 80 e  coordenado já à distância, de Lisboa); para ser  perfeitamente abrangedora, ela devia incluir ainda outros campos de intervenção directa, na dinamização artística e cívica. Outra hipótese: evocar, já em gesto muito mais próximo e íntimo,   aquele  tempo de Lisboa, na segunda metade da década de 1970 e até ao funesto Maio de 1983 – e aqui começaria por afirmar como me foi fundamental o reencontro com o Santos Barros em 1976, numa Lisboa que se tornara, por essa altura,  a nossa cidade, para me deter depois nas cumplicidades várias que nos levaram a projectos editoriais (a revista A Memória da Água-Viva, a colecção de poesia «Garajau») e a outras formas de acção que contribuíram para afirmar em Lisboa a realidade cultural açoriana  – cumplicidades suportadas por  uma amizade  vinda já de trás e à distância e que ganhou então dimensões novas e aprofundadas. Passando ao largo dessas hipóteses, atenho-me por agora à matéria específica deste livro que, finalmente, faz justiça à obra de um grande poeta da língua portuguesa, poeta de ilhas e do mundo, da vida e da morte.

Uma proposta, então,  para a  leitura da poesia de J.H. Santos Barros:  começar pelo poema «Fazer versos dói», incluído no livro  S. Mateus, outros lugares e nomes (1981), que,  na sequência de Os Alicates do Tempo (1979),   constituía o reconhecimento editorial de um poeta que viera publicando em edições domésticas e despojadas, quase sempre por processos muito artesanais que,  para o poeta,  eram ainda  uma forma de afirmação  na margem.

«Fazer versos dói» pode entender-se  como uma arte poética muito pessoal, balanceada entre a literatura e o mundo, explicitando na sua discursividade torrencial a relação tensa, violenta mesmo,  entre o poema e a sua matéria, entre a escrita e a vida (a morte). Não propriamente sobre a angústia da página em branco, dos seus desafios e constrangimentos, nem sequer uma elaboração,  metafórica ou outra,  sobre o acto  poético e a construção do poema, de que a literatura da época nos deixou exemplos suficientes; antes, uma exposição dramática dos modos como a vida externa, com a sua dureza e dor, os seus «nós», vem desaguar no outro lado do mundo que é o texto e nele se entrechoca com a vida interna do poeta e ambas se desfazem e refazem no espaço da escrita – sem  que isso rasure a consciência da diferença  entre duas oficinas: a do operário e a do poeta.

Poema  de um tempo amadurecido e reflexivo, «Fazer versos dói» constitui um bom campo de verificação de alguns traços próprios da poesia de  Santos Barros, quer pensemos por contraste com a sua expressão inicial, quer alarguemos a leitura à mais   recente, isto é,  àquela reunida nos dois livros em questão. E, no entanto, nada disto é matéria definitiva nem estanque, pois algumas dessas estratégias discursivas são retomadas e adoptadas em função de determinados contextos e situações poéticas. 

Este é, de algum modo, o poema de um tempo já em desencanto e de refluxo de um optimismo individual e histórico, que não chega já (talvez não tenha chegado nunca, no poeta) para disfarçar as sombras que aguardam  mais adiante, no caminho da vida e da História: entre a morte própria e os amanhãs colectivos que não existirão e, por dignidade, o poeta se recusa a celebrar, fica a expressão de um indisfarçável pessimismo que, não raro, lança mão da ironia, particularmente eficaz quando ela se exerce sobre discursos outros, processo devidamente exemplificado neste poema. Convocados de forma directa ou indirecta, pela alusão geral ou pela citação explícita, referências culturais e literárias,   fragmentos e inscrições pontuais, tudo isso é integrado e questionado  no interior do poema, que lhes reduz o poder e o valor semântico e pragmático; noutros casos,  é o próprio léxico o objecto desse tratamento irónico, por efeito de um desvio oblíquo da significação corrente para domínios muito particulares que a recontextualizam e  subvertem, por vezes numa dimensão eufemística ou até cruel; encontramos alguns  exemplos disto na sequência «Emboscadas»,  não por acaso um conjunto de poemas sobre a guerra em África –  este foi  um campo temático  recorrente na poesia de Santos Barros e objecto natural de um tratamento irónico ou sarcástico  no seu tom violento de denúncia, uma violência que nunca equivaleria à que a guerra constituiu em termos de experiência pessoal e de indignidade humana.  A ironia é, por outro lado, um registo frequente na abordagem ao universo literário, aos seus mitos e vates  domésticos, às suas pequenas misérias, atingindo mesmo situações de auto-ironia através de um interposto discurso crítico que é submetido ao questionamento por parte do próprio sujeito lírico. Mas nem sempre essa  convocação de discursos e referências  tem por objectivo reduzi-los através da ironia: em muitos casos, a sua recuperação  integra-se num propósito de interpretação e releitura da história e da cultura, especialmente quando se trata do universo referencial açoriano.

Numa outra perspectiva, «Fazer versos dói» constitui ainda o modelo de uma certa discursividade que ganha espaço  (mesmo que não exclusivo) e maior consistência nesta fase de amadurecimento poético, marcada pelo alongamento do verso e pelo seu encadeamento frásico num processo que simula o andamento da fala e o explora até ao limite da respiração (ou ultrapassa-o mesmo).  Isto coexiste, no entanto, com diversas manifestações de um discurso sincopado e entrecortado, não raro cortando a fluidez do discurso, interrompendo-o de forma abrupta. E quem ler o longo poema sequencial «A Humidade» deparar-se-á ainda com um outro modo expressivo, de uma maior contenção, o poema abolindo por vezes a articulação sintáctica e organizando-se nominalmente, com base na enumeração e na acumulação dos nomes, numa tentativa de abarcar a totalidade do mundo, nesse caso o mundo açoriano; de resto, numa leitura de  contextualização, podemos dizer que «A Humidade» representa a síntese de dois poetas açorianos, Roberto de Mesquita e Pedro da Silveira:  por esses aspectos discursivos, mas também pelo modo como aí  se articulam o sujeito e a história com os seus fantasmas (espanhóis e americanos, entre outros),  na expressão de uma condição insular açoriana magoada e íntima que convoca no mesmo passo a dimensão social e colectiva da açorianidade.

Creio ter sido Luís de Miranda Rocha, talvez o mais demorado e atento  leitor de Santos Barros, quem chamou a atenção para a mudança verificada na sua poesia com a vinda para Lisboa. Sendo isto verdade, não creio que possa, todavia, colocar-se em termos absolutos, pois  uma leitura atenta de Testes e versos para andar na rua (1973) permitirá verificar  já aí a presença de processos que se desenvolverão na obra posterior, a nível de alguma imagética inovadora e inusual, embora lançando mão de elementos comuns, reconstruídos no interior do poema, e também quanto à instituição de um quotidiano próximo, tratado ora em registo realista, ora alegórico e alusivo. O que o tempo de Lisboa proporcionou foi um alargamento de referenciais,  literários e pessoais, que não deixaram de repercutir no interior do discurso poético, libertando-o em vários domínios e complexificando-o, trazendo para o seu interior uma dinâmica e uma experiência de mundo (textual e empírico) a cuja formulação não é indiferente a leitura, entre outros, dos autores  da geração beat (Ginsberg e Ferlinghetti, por exemplo), notória na articulação imagética, nalguns casos, e na visão cáustica de um quotidiano moderno e citadino, fragmentado e caótico, no qual emerge um eu revoltado, por vezes, quase sempre desapossado e em perda. Estamos aqui perante um (con)texto  que traduz  a ultrapassagem e o enriquecimento da aprendizagem referida por Gil Reis no seu elucidativo depoimento, tão por dentro do tempo angrense e dessa experiência inaugural de um livro em comum com Santos Barros (veja-se o dossiê de textos).

O leitor terá, finalmente, a possibilidade de tomar contacto com a poesia toda de J. H. Santos Barros, reunida agora a que publicou em vida e a deixada  inédita e dispersa. É um facto digno de registo e,  para quem ache que ela demorou muito a chegar,  importa dizer que é sempre tempo de reler ou descobrir um poeta como este.

Urbano Bettencourt

Outubro de 2017

(Texto incluído em J. H. Santos Barros, Alexandrina, como era)