Quesada, Morales, Canárias (e um parágrafo eliminado )

A primeira edição de Mesa de Amigos, de Pedro da Silveira, ocorreu em  1986 nos Açores; o volume correspondia ao número 46 da colecção Gaivota, da responsabilidade da Direcção Regional dos Assuntos Culturais. Era um conjunto de «versões de poesia», segundo a expressão do autor, que a preferia a «traduções». Resultado de cerca de três décadas de trabalho, Mesa de Amigos reunia  cerca de 60 poetas de seis línguas.  

No Posfácio, Pedro da Silveira expende uma série de considerações sobre o seu modus operandi,  as dificuldades em manter-se «próximo» de aspectos formais sem atraiçoar os conteúdos, o auxílio que lhe chegou de vários lados, refere de passagem poemas já anteriormente traduzidos para português (e nalguns casos discordando do resultado obtido). No penúltimo parágrafo, e em jeito de aviso à navegação interna, Pedro da Silveira chama a atenção para o facto de a sua Mesa incluir um poeta das Canárias, Alonso Quesada, aproveitando o ensejo para alargar o âmbito das suas considerações e reparos:

«Aos leitores açorianos, incluídos os também poetas, faço notar a presença de um poeta das ilhas Canárias, que foi lá, com Tomás Morales, dos maiores da sua geração, a do Modernismo hispânico. Nem ele nem Morales foram conhecidos entre nós no tempo em que publicaram as suas obras, o que, a ter-se dado, talvez houvesse contribuído a não termos, nessa altura, a pobreza  de vida literária que tivemos. E já agora acrescento que mesmo hoje nos seria assaz benéfico estarmos atentos à tão viva vida cultural das Canárias – tão viva pelo que toca à criação poética como à da ficção, ambas de acentuada marca local mas de olhos sempre atentos ao mundo, e ainda no campo das artes plásticas. Na poesia, Quesada e Morales têm antecessores notáveis, e os sucessores, de Luiz Álvares Cruz aos surrealistas (o manifesto dos surrealistas canários apareceu em 1935!) e posteriores poetas, também são muito dignos de se conhecerem, de os conhecermos neste outro arquipélago do Atlântico. Estarmos em dia com certas burondangas importadas de Lisboa ou, por via de Lisboa, com o que teimam lá em importar de França, não só não basta como, pior!, serve a tornarmos à indigência de antes de Nemésio.»

Deixo aos meus amigos do outro arquipélago do Atlântico (a sul) a avaliação crítica e os reparos ao  (des)acerto do olhar de Pedro da Silveira sobre a literatura deles. Mas gostava de ressalvar o seguinte: quatro décadas depois, esse parágrafo  era ainda a manifestação do  mesmo impulso (da mesma curiosidade ) que,  nos anos quarenta, o levara a aproximar-se da literatura cabo-verdiana e adensar-se nela, trazendo para Ponta Delgada e para o jornal A Ilha a moderna expressão literária daquele arquipélago (isto é, a da  geração claridosa). Uma descoberta pessoal, mas com implicações naquilo que, para Pedro, devia ser uma literatura açoriana atenta ao seu tempo literário, social e político também.

Ora, esse parágrafo desapareceu na segunda edição (Assírio & Alvim, 2002), destinada a um público mais alargado, seguramente pouco ou nada preocupado com a história literária dos Açores e as suas mazelas internas. Recuperá-lo aqui é ainda uma forma de atestar a natureza de um espírito errante e em contínua busca  de espaços culturais diversos e, ao mesmo tempo,  preocupado com o  (bom) andamento da literatura   açoriana.

U.B.