José Martins Garcia e Daniel de Sá: diálogos com Gaspar Frutuoso

Para ser mais rigoroso, o subtítulo do meu texto devia substituir Gaspar Frutuoso por o discurso ou discursos da história. Isto permitiria dar melhor conta da amplitude do objeto desse diálogo, que em José Martins Garcia não se limita ao cronista quinhentista. Seja como for, o mais relevante, neste caso, será realçar aquilo que sumariamente  aí se enuncia: o texto de Gaspar Frutuoso como propiciador da aproximação  de dois escritores tão distanciados entre si como José Martins Garcia e Daniel de Sá, em termos de escrita, de compreensão ou visão   do mundo e também  dos modos de  representá-lo. No primeiro deles, uma visão pessimista anula a possibilidade de um qualquer amanhã (mesmo daqueles  que não cantam) e até o passado só existe enquanto matéria que a memória revolve de forma exacerbada no seu desespero e na sua angústia e  que alguns narradores transformam em simples produto contrabandeável. Em Daniel de Sá, uma visão construtiva e finalística (teleológica) da história, sujeita, portanto, a um progressivo aperfeiçoamento, proporciona o traço de esperança que, em regra, lança um rasto de luz,  mesmo que breve, sobre as ruínas da humanidade e dá sentido ao percurso individual.

Nisso residirá, estou em crer, uma parte da explicação para o diferente modo como cada um dos dois autores do século XX se aproxima do texto de Gaspar Frutuoso, o convoca,  relê  e  reescreve, para lá de aspetos que traduzem um comum ponto de partida ou de vista.

O romance A Fome (1977), de Martins Garcia, e a Crónica do Despovoamento das Ilhas (1995), de Daniel de Sá, constituem o objeto da minha  análise, que representa simplesmente o primeiro e curto passo de uma abordagem mais desenvolvida e aprofundada.

A Fome poderá entender-se essencialmente como um romance de personagem, se atendermos a que textualiza o percurso do jovem estudante  António Cordeiro, narrador da sua própria experiência, uma experiência de iniciação na vida e nos seus mistérios, seja ela a do “mundo abreviado” (V.  Nemésio) da ilha (Pico, Faial), seja a do grande mundo, de que Lisboa é apenas a parte do todo (França, Estados Unidos em narrativas posteriores).

Todavia, e a um outro nível, o percurso individual é indissociável de um percurso colectivo, torna-se  a concretização particular  de um destino  que se projecta sobre a personagem como manifestação de uma fatalidade histórica, até porque a viagem  marítima que António Cordeiro empreende para Lisboa em 1956 apelará a outras viagens e a um destino   colectivo de errância que uma visão apocalíptica propicia: “o fim do mundo já acontecera: e Deus salvara uns, condenara outros, e deixara os restantes a vaguear” (Garcia, 2016: 17).

Mas António Cordeiro é um narrador-protagonista com algumas particularidades, dado que ao longo do seu relato se vai metamorfoseando e assume  várias vozes e rostos, em articulação com determinadas «estratégias metatextuais» delineadas desde o início através da citação de excertos de três cronistas açorianos: Gaspar Frutuoso, Frei Diogo das Chagas e António Cordeiro.1 Incorporados no discurso, por vezes mesmo objeto de apropriação por parte de um outro  narrador que os apresenta como seus (Garcia, 2016: 28), os fragmentos selecionados por Martins Garcia, de notória dimensão  lendária, veicularão  uma perspetiva hoje problematizável da história insular. As citações em causa não se apresentam como simples argumento de autoridade, a caucionar uma afirmação própria e a dar-lhe credibilidade e consistência, ou como exercício de ostentação de saberes e de utensilagem textual; nem sequer reclamam, ou o autor reclama para elas, o estatuto de fontes documentais ao serviço de uma reconstituição histórica, para o que poderia apontar, num primeiro momento, a sua natureza de crónica sobre as ilhas e a formação da sociedade açoriana (mesmo que não exclusivamente sobre estas). Na verdade, A Fome não é um romance histórico (veja-se  o modelo enunciativo), não se conjuga com o modelo tradicional do género, que se propunha, entre a ficção e os referenciais empíricos, a configuração de uma determinada época, com as suas personagens e ambientes.

Os excertos citados tornam-se funcionais pela interpretação que deles faz o narrador, pela leitura «crítica» a que os submete, confrontando-os uns com os outros e estabelecendo-lhes uma organização hierárquica, pelo menos em relação a alguns conteúdos narrativos (mais válidos uns do que outros), tudo isso num diálogo nem sempre reverencial e acomodatício com esses antecessores. Numa breve anotação sobre Frutuoso, afirma o narrador  em nítido  distanciamento irónico: «O doutor Gaspar Frutuoso, ministro de Deus e divulgador de fábulas, cronista e ficcionista por graça da verdade e da mentira» (Garcia, 2016: 22). Se a «mentira» se coaduna com o estatuto do autor de ficção que Gaspar também foi, a «verdade» já não parece adequar-se ao «divulgador de fábulas» e estas ainda menos ao estatuto de  cronista. E ao comparar António Cordeiro com Frutuoso, escreve que o primeiro  «conseguiu, em muitos aspectos, superar em grandeza suspeita o testemunho atribuído a Gaspar Fructuoso…» (Garcia, 2016: 20).

 A crónica quinhentista (e a posterior) está, deste modo, sob suspeição e Martins Garcia aproveita dela alguns aspetos mais problemáticos do ponto de vista histórico, isto é, fantasiosos ou lendários, para os integrar no discurso narrativo, fazendo-os participar na sua matéria ficcional, lado a lado com as fábulas provenientes da tradição oral.  A Fome abre com o relato do episódio vagamente fabuloso de Dona Matilde, a explicadora de francês, que será posteriormente interpretado como imagem especular de outro já relatado por Frutuoso e António Cordeiro:

«Surgira glorioso o corpo nu da mulher, diante da tripulação embasbacada do barco que rumava a Nova Iorque. Por um caprichoso esquecimento, a fábula não relata todas as consequências de tamanho despudor. Dona Matilde, por graça da cútis fulgurante, deitou-se num sol de lenda, entre as costas americanas e os penedos atlânticos, prostituída e santa como Maria Madalena. E o pai, fidalgo de cepa flamenga, atirou-se borda fora, lavando a desonra no mar sulcado, em primeira mão, por seus antepassados.» (Garcia, 2016: 15).

A inscrição histórica da aristocracia flamenga e das viagens para oeste e ainda a dimensão profana do episódio afastam-no do sentido místico e religioso que atravessa o episódio original em Frutuoso (reescrito por António Cordeiro), onde a visão da mulher vestida de branco (afinal, o Demónio disfarçado de Virgem Maria) era também um apelo à descoberta e à viagem (de perdição) entre o Faial e o Pico:

«…respondeu [o Ermitão] que da vizinha ilha do Pico lhe aparecia uma mulher vestida de branco, que o chamava de lá, que se fosse para ela, e que por lhe parecer que era a Virgem Senhora, fazia aquele barquinho, de couro por fora, e determinava de passar lá quando a Senhora outra vez o chamasse: os que o ouviram o tiravam disso, e contudo o Ermitão ficou acabando o seu barquinho e se meteu nele ao mar, e nunca mais foi visto nem achado; e assim o demónio com capa de santidade fez morrer aquele Santo Ermitão, sem dele nem do barqueiro se saber mais.» (Garcia, 2016: 20-21).

 O romance terminará, em movimento de circularidade ou de retorno cíclico e explicitando o próprio processo da escrita, com a recuperação da sua frase inicial e em articulação direta com o fragmento do cronista acabado de transcrever acima, num contexto de diferente significação. Mas, ao longo da narrativa, a «aparição» fora sendo retomada como um elemento da diegese, «a mulher de branco» surgira, metamorfoseada, a personagens diversas e em circunstâncias distintas umas das outras, tornara‑se como que um leitmotiv, estabelecendo uma determinada articulação da narrativa e uma afinidade entre os seres que a povoam.

A opção por um narrador que conta a sua história (autodiegético), cujos marcadores formais só se tornam manifestos no segundo parágrafo da obra, é uma estratégia que permite ao narrador  transmutar-se ao longo de cinco séculos, assumir diferentes papéis e vozes, ora singulares, ora plurais (o «nós») e transportar‑se para espaços tão distantes e díspares, condensando em si uma «sobrecarregada memória» de fome, peste e terramotos que é, em síntese, a da condição insular açoriana e da dispersão no mundo. Em nome de uma auto-designada «estética da transmigração», o narrador de A Fome pode, sem transição, ser o «eu» do Constantino caçador de baleias (Garcia, 2016: 124) e do Belarmino preso na Vila da Madalena (Garcia,2016: 100 e 103) ou o «nós» dos bravos do Mindelo (Garcia, 2016:  182). E pode ser igualmente a vítima escolhida para o retorno do episódio do dr. Fernão de Pina Marrecos relatado pelo cronista (Garcia, 2016: 22-24), num processo cíclico  que atesta a permanência de mecanismos feudais de dominação e opressão social  ainda em meados do século XX.

O facto de o narrador também se chamar António Cordeiro proporciona-lhe a possibilidade de interpelar o cronista e o seu texto num jogo especular e de constituir‑se como uma réplica de alguns dos seus dados biográficos, inclusive no ofício da escrita e no registo da memória pessoal e alheia: «E no silêncio do quarto ou do claustro, uma mesinha para escrever. Talvez continuar a História Insulana das Ilhas a Portugal Sujeitas, suspensa no ano de 1715, em presença desse absurdo chamado Morte…» (Garcia, 2016: 149). Este hipotético  prolongamento que A Fome representaria faz‑se, porém, em moldes enunciativos muito particulares, pois organiza‑se em torno de uma personagem central que relata o seu percurso num período de tempo preciso, de 1953 ao início dos anos 60, e é nessa história individual e contemporânea que vêm inscrever‑se alguns acontecimentos da história coletiva remota e, sobretudo, o retorno  das experiências de cinco séculos, replicando-se no presente como um estigma original, o da insularidade enquanto geografia e história.

A recorrência do nome António Cordeiro na ficção de Martins Garcia não pode passar sem a consideração do investimento semântico de que é objeto por parte do autor. Antes de chamar‑se «Carvalho Araújo», o navio em que o protagonista  de A Fome viaja tinha tido o nome do cronista  António Cordeiro, que, «em hora de blasfémia monopolista, uns senhores de São Miguel haviam obscurecido.» (Garcia, 2016: 25). Se a atribuição do nome ao narrador veicula valores simbólicos associados à história e ao seu relato, a aplicação ao navio, mesmo já rasurada, associa‑lhe conotações do campo da viagem e das suas vicissitudes, que, aliás, é um dos elementos biográficos do cronista recuperados para o discurso e para a experiência de vida do narrador de A Fome. Valores simbólicos continuados ainda com a  escolha do nome de António Cordeiro para narrador-protagonista do romance  Imitação da Morte,  com implicações que amplificam aqueles aqui referidos.

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Em Daniel de Sá, o diálogo com o cronista quinhentista estabelece-se desde logo, mesmo que de forma indireta,  com o título do seu livro, Crónica do Despovoamento das Ilhas, em que  uma inversão semântica contrapõe um sentido de crónica divergente do  da obra de Frutuoso, que fez da ocupação,  desbravamento e povoamento  do espaço insular a  matéria da sua narrativa.

O  livro de Daniel de Sá chama  para título o mesmo da sua última narrativa, «em que  se fala das causas que levaram muita gente a sair das ilhas e de como era feita a viagem para a Terra de Vera Cruz», como se pode ver na descrição-síntese que antecede o relato (p. 182). Essas causas são de natureza geográfica e geológica (a erupção do Capelo em 1672), mas sobretudo económica, com a degradação  da vida social, o aumento progressivo da penúria, a substituição da fartura pela pobreza, de que apenas «escapavam os privilegiados por títulos rendosos ou bem providos de cargos públicos» (p. 187). Situando  a ação/a viagem nos finais do século XVII (isto é,  um século após a redação da crónica de Frutuoso), a narrativa de Daniel de Sá configura já o reverso da história, ou enuncia talvez uma história nova, aquela cuja matéria será predominantemente  a fuga e a dispersão. Em todo o caso, não deixa de sentir-se  aqui ainda o eco de Frutuoso, que no seu texto registara o suposto aviso do Infante D. Henrique, o qual  «dizem que disse que os primeiros povoadores roçariam e os filhos comeriam, os netos venderiam, e os bisnetos fugiriam» (Frutuoso, I: 59).

Por outro lado,  graças a  um poder de mimetização da prosa de  quinhentos,  com o seu discurso chão, o gosto pelo contraste e o balanceamento perifrástico, e lançando mão de um léxico e de uma sintaxe arcaizantes, a escrita de Daniel de Sá ganha o tom e o ritmo que, por este lado, a colocam em diálogo direto com a de Gaspar Frutuoso.

Esse diálogo direto pode situar-se ainda a outro nível, com o cronista «moderno» a convocar  o texto de Frutuoso e a  comentá-lo, num processo de evidente distanciação  irónica:

«Mas ainda, e por lembrar fenómenos vegetais, que mais tarde viriam a transferir-se, como se sabe, para o Entroncamento, refiram-se os nabos a que Frutuoso alude, e cresciam no termo de Ponta Delgada, chegando a ter o tamanho da cabeça de um homem, e outros mais, o que seria de grande proveito se não fossem ocos. Assim  que, ao facto de Frutuoso comparar nabos ocos a cabeças de gente, sucedeu o nosso costume de comparar a nabos as cabeças mais vazias.» (Sá, 1995: 70)

Este  cronista «moderno» balança-se entre o presente e o passado (aqui a referência ao Entroncamento, noutro lado a Foz Côa), chama a si o estatuto de comentador avisado e preocupado em bem formar o leitor, por vezes ostensivamente mais informado que o seu antecessor e discutindo-lhe as explicações e os termos científicos, outras vezes sentencioso e ingenuamente  opinativo, o  que é ainda uma forma de ironia; ou então subvertendo o sentido da história e a lógica dos comportamentos expectáveis e desfazendo o jogo do decoro e das aparências sociais, como no episódio das freiras de Vale de Cabaços, hoje Caloura, ameaçadas por um barco  de piratas. Sem hipótese de auxílio institucional, dada a lentidão da burocracia, tendo-se os camponeses posto em fuga, o socorro veio, afinal, de algumas mulheres de  Água de Pau

que desceram até às pedras do porto, dispostas a  defender a honra das professas sacrificando a sua, se preciso fosse, ainda que, sem confissão declarada, entre si caladamente entendiam que tal perda não lhes seria desgosto… Não eram aqueles homens valentes por serem corsários e galantes por serem franceses? (Sá, 1995: 73)

É certo que, no final do episódio, Deus encarregar-se-á de proporcionar uma solução conveniente à boa ordem do mundo e das almas, com  o  mar cada vez mais tempestuoso levando os franceses a tratarem da própria vida. Talvez essa intervenção divina seja o resultado das preces das freiras, pois diz-nos o narrador que elas, «no convento, disfarçavam o seu santo pavor em orações ardentes para que os franceses não alcançassem terra, enquanto, mais abaixo, as voluntárias a salvadoras da sua honra rezavam em silêncio para que o mar amainasse…» (Sá, 1995: 73)

A folha de rosto de Crónica do Despovoamento das Ilhas  traz em localização subtitular e parentética a seguinte descrição que constitui o desenvolvimento daquela  que já constava da capa: e outras cartas de El-Rei, ou a ele dirigidas, e em que se trata também de muitos outros feitos que a propósito se contam. Trata-se de uma descrição que, para lá do mais, comporta uma informação sobre procedimentos internos, especificamente o recurso ao género epistolar como suporte ou moldura para o relato de um conjunto de  acontecimentos insulares (ou com estes relacionados, se pensarmos, por exemplo,  na carta de D. Manuel em resposta a outra de Inês da Cunha).

Neste contexto, quer em transcrição direta, quer apresentadas e comentadas por uma voz externa,  as cartas facilitam o acesso a acontecimentos pessoais  (como a de Inês Cunha), a queixas individuais  ou institucionais em que tanto se  inscrevem problemas sentimentais como os sinais e a denúncia do desregramento do serviço e dos gastos públicos, num jogo de (dis)simulações em que, por vezes e   a partir dos  signos do passado e da sua organização narrativa,  se podem facilmente detetar  as marcas da contemporaneidade do leitor.

Exemplar neste aspeto, enquanto ato de denúncia e exercício de humor,  é a «carta supostamente atribuída a Gaspar do Rego Baldaia, e que seria para enviar a El-Rei D. João III, na qual se queixa de um jogo de canas entre cavaleiros de S. Miguel e da Terceira organizado pelo Dr. Manuel Álvares». (Sá, 1995:  44-49). Escrita para denunciar os gastos e desperdícios de dinheiro por parte deste último, desta vez  a propósito de um jogo de canas programado com o objetivo de assinalar  a inauguração de  um marcador dos resultados do jogo, a verdade é que os símbolos identificadores de cada uma das equipas contendoras reenviam  de forma óbvia para outro desporto e o jogo de canas não é mais do que uma partida de futebol entre o Santa Clara e o Lusitânia, Que através disso se veicule a crítica a uma política da ostentação e do «pão e circo» é facto que resulta apenas da arte do  escritor, em que os anacronismos e os comentários do autor da carta proporcionam uma dupla leitura, a do passado e a do presente.

Daniel de Sá terá sido o escritor da sua geração com um mais seguro e aprofundado conhecimento da história, e não apenas da insular (cito sem rede um depoimento de  Avelino de Meneses). Isso nota-se no interior da sua ficção, no aproveitamento que dela faz em diferentes moldes e situações. O  caso de  Crónica do Despovoamento das Ilhas, que abrange outros domínios temporais para cá  dos  referenciados por Frutuoso,  constitui um momento particular de revisitação intensiva da história insular, aquela história miúda que houve  e também aquela  que podia ter havido (e já no domínio da ficção). Também esta última entra em diálogo com Frutuoso, na medida em que se apresenta como um aditamento à crónica de quinhentos, uma espécie de adenda em cujo interior o passado insular se constrói como uma «invenção», que, mesmo sendo-o, não deixa de lançar alguma luz sobre  o tempo histórico e as suas gentes.

Ao contrário do que acontece em Martins Garcia, onde por vezes encontramos comunidades a que a história nem sequer  chegara, em Daniel de Sá a história é um processo dinâmico, em que intervêm homens concretos, as suas glórias,  pequenas ou grandes, com as suas fraquezas  e misérias,  mas capazes de redimir-se. Isto poderá explicar o grau de controlado  otimismo, talvez antes bonomia, com que a própria  história é vista, com base na crença  de que há sempre uma réstia de bondade que dá sentido aos factos e aos gestos individuais e coletivos. «Se a Humanidade resiste a tantas coisas más é porque será decerto melhor do que parece»  – conclui sentenciosamente um dos narradores de Crónica do Despovoamento das Ilhas.   

Ponta Delgada, 11 de março de 2016

(Encontros Daniel de Sá)

NOTA

[1] Gaspar Frutuoso (1522-1591) nasceu em Ponta Delgada em 1522 e faleceu na Ribeira Grande em 1591. Frequentou a Universidade de Salamanca, onde se bacharelou em Teologia. Autor de Saudades da Terra, crónica que aborda os arquipélagos dos Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde na perspetiva de um único espaço atlântico.

António Cordeiro nasceu em Angra do Heroísmo em 1640 e faleceu em Lisboa a 22 de fevereiro de 1722. Filósofo e historiador, estudou Filosofia e Teologia na Universidade de Coimbra, em cujo Colégio das Artes lecionou. Como historiador destaca-se pela História insulana das ilhas a Portugal sujeitas (1717), que tem como fonte principal o manuscrito de Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso.

Frei Diogo das Chagas nasceu em Santa Cruz das Flores, em finais do século XVI e faleceu em Angra do Heroísmo, já na segunda metade do século XVII. Historiador, deixou-nos, entre outras obras, Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores,que também acusa a leitura de Gaspar Frutuoso.

REFERÊNCIAS

Gaspar Frutuoso (1984), Saudades da Terra, vol. 1. Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada.

Daniel de Sá (1995), Crónica do Despovoamento das Ilhas. Lisboa, Edições Salamandra.

José Martins Garcia (2016), A Fome. Abertura de Luiz Antonio de Assis Brasil. Lajes do Pico, Companhia das Ilhas.   

A moldura histórica de A Escrava Açoriana

As duas mais recentes narrativas de Pedro Almeida Maia, para lá das suas diferenças de tempo histórico e respectivos  condicionalismos, do género dos protagonistas, entre outras,  apresentam um ponto em comum: trata-se, em ambos os  casos, de duas fugas para Oeste, esse lugar mítico do imaginário insular  –  e mítico mesmo quando a experiência alheia não era suficiente para dissuadir os que tinham ficado ou, pelo menos, refrear-lhes  o impulso para a partida.

Em Ilha-América (2020),  Almeida Maia parte de «acontecimentos e locais verdadeiros» (informação paratextual)  para construir a história do jovem Mané que em Setembro de 1960 se escondeu no trem de aterragem de um Lockheed Super Constellation e deixou a ilha de Santa Maria rumo a Caracas, com escala nas Bermudas. A história individual permite ainda ao escritor  convocar alguns elementos que ajudam a   recomposição de um  tempo sócio-político,  o do salazarismo  e da fome  insular: «os tempos de pobreza iam acabar», lê-se logo no início do capítulo primeiro (num   registo de discurso indirecto livre, que implica  personagem e narrador).

Diferente é a situação narrativa em A Escrava Açoriana (2022): sobre um fundo colectivo, e no ano de 1873, destaca-se a personagem Rosário,  num contexto de emigração, com enfoque na emigração clandestina  (aquela que, a partir de determinada altura,  se realizava em pleno dia e através do cais de embarque[1], como escreve no século XIX um  historiador jorgense).

É deste fenómeno migratório que pretendo ocupar-me, trazendo alguns elementos  que permitam compreender certos fenómenos  do tempo histórico açoriano em que Almeida Maia enquadrou as suas personagens (o século XIX, com uma «entrada» já nas primeiras décadas do século XX), fenómenos que ajudam a esclarecer a justeza de um título como A escrava Açoriana.

Não sendo um fenómeno exclusivo de oitocentos, a emigração ganha contornos específicos neste tempo: pelo seu peso social e  também pela mudança de destino, com os Estados Unidos a conquistarem espaço ao Brasil.

É fácil encontrar na imprensa alertas sobre as consequências económicas desta emigração  excessiva e descontrolada, embora sem deixarem  de reconhecer a importância das remessas entradas  no arquipélago, sobretudo provenientes dos Estados Unidos. A título de exemplo, Ernesto Rebelo e Manuel Zerbone lançam os seus alertas  nos jornais da Horta e  Mont’Alverne de Sequeira publica em 1891 o  opúsculo A emigração dos Açores, em que analisa o fenómeno migratório nos seus diversos aspectos:  enquanto exercício do direito de circulação e  elemento capaz de «minorar as desgraças do povo nos períodos agudos de crises económicas, que os governos deixaram entregues à própria evolução». (p. 90), embora também factor de desequilíbrios sociais

Com efeito, conhecem-se as crises económicas que, para lá dos desastres naturais (tempestades,  secas),  marcaram a segunda metade do século XIX, com o colapso das vinhas no Pico, (meados do século) e a crise  dos laranjais em  S. Miguel (a partir de 1875).

«Ao longo da década de 50, a população do Pico diminuiu em consequência da grave crise provocada pela doença das vinhas», escreve Maria Isabel João  (Economia e sociedade açorianas em meados do século XIX, p. 77). E se não é de crer que os picoenses se tenham dissolvido no ar, a conclusão a retirar é que a emigração foi a «solução»  por eles encontrada para evitar morrer de fome.

Por outro lado, e no distrito de Ponta Delgada, o incremento  da emigração legal, a partir de 1880 (com o seu auge  nos anos de  1880 a 1883, um total de 14164 pessoas nesses quatro anos), demonstra que nem a construção do porto artificial de Ponta Delgada foi suficiente para absorver o excesso de  mão de obra micaelense.

Ora, estes dois acontecimentos, que aqui funcionam apenas como pontos de referência, não podem fazer-nos esquecer as  «crises alimentícias» que pontuam o século XIX açoriano.

Na sua edição de 27 de Março de 1858, escrevia o Açoriano Oriental: «o brigue Guilherme, trazendo de Viana 9000 alqueires de milho para  a Terceira e achando-se este na actualidade à venda n’aquella ilha a 480 réis, foi immediatamente leval-o á ilha do Fayal, onde está  por um preço muito elevado, e não o há».

A  calamidade não era exclusiva do Faial, pois a 11 desse mês o Angrense noticiava que tinham chegado à Terceira diversos barcos idos de S. Jorge e carregados de gente, «a maior parte da qual vem fugindo à fome, e outra vem comprar cereais.»

Ou seja, o quadro que os Açores apresentam no decurso do século XIX tem as condições suficientes para que a emigração se perspective como a saída possível perante uma  realidade social e económica concreta.

Neste contexto, ganha contornos ainda mais deploráveis aquilo que a imprensa da época designou como a escravatura branca ou tráfico de brancos ou ainda o comércio da escravatura branca. Porque era de comércio que efectivamente se tratava: o transporte de homens e mulheres para o Brasil, onde eram depois arrematados pelos clientes brasileiros (quando tudo corria bem – em caso contrário, ficavam abandonados à sua sorte, melhor dizendo, ao seu azar).

Que se tratava de um negócio do conhecimento público e transversal à sociedade, prova-o o facto de, em Abril de 1858, o jornal O Angrense anunciar que o Comendador António da Silva Baptista decidira afastar-se do «tráfico de escravatura branca» e alugara o seu navio Jovem Artur … para o mesmo fim!  «Não trafica directamente, mas lucra com o tráfico; é o mesmo” – conclui o jornal.

No final desse mesmo ano, o cônsul português no Rio de Janeiro enviou ao governador civil de Ponta Delgada um ofício onde  refere  que  a barca brasileira Dois amigos aportou àquela cidade com «seis centos e doze passageiros, tendo largado o ancoradouro [de Ponta Delgada]  com cento e vinte sete!!!»

Uma simples operação aritmética  permite constatar que o diferencial de 485 é superior ao triplo dos passageiros efectivamente registados, ou seja, estamos perante uma descarada situação de emigração clandestina. Num ofício enviado ao Ministro do Reino em Janeiro de 1859, o governador civil rejeita as acusações de conivência com os embarques clandestinos que lhe são feitas pelo cônsul e afirma que «se este tivera de largos tempos feito as participações que agora começa  a fazer, estes abusos teriam terminado». Aliás, já no seu Relatório de Setembro de 1858, o governador civil dava conta da teia de interesses e dos conluios existentes em torno da emigração clandestina: «privando com os jurados, os donos e os capitães dos navios, os aliciadores e os traficantes zombam, escudados por esta forma na impunidade, das autoridades e levam a sua zombaria ao maior grau de descaro.»

Uma das personagens centrais em todo o processo é, na verdade, o aliciador  ou engajador, descrito em alguma imprensa como o especulador ousado que «aufere pingues lucros d’este inhumano comércio. É certo que por vezes o braço da lei se estende sobre ele, mas a sordidez  do seu comportamento é bem notória na notícia do jornal A Persuasão de13 de Janeiro de 1869: «N’algumas das ilhas do Distrito da Horta (…) os engajadores e mesmo os capitães de navios recebem dinheiro dos que pretendem emigrar, levam-nos até bordo dos navios e depois mandam lançal-os na costa».

Será talvez momento de suspender as referências factuais e darmos alguma atenção aos modos como a emigração pôde ser perspectivada, em termos nitidamente contraditórios que traduzem, afinal, pontos de vista e interesses de teor diferente e até mesmo higienista e de supremacia social.  

Mont’Alverne de Sequeira reconhece a importância económica da «exportação de gente» (p. 90), sobretudo em tempos de crise, e o papel das duas Américas no acolhimento de «milhares de indivíduos do nosso arquipélago» (90), assim contribuindo para minorar a fome e a miséria, graças à entrada de dinheiro, que «traduzia em libras esterlinas as saudades da família» (p.90)

Mas é o mesmo Mont’Alverne de Sequeira que escreve:

«A princípio as duas Américas foram  o vazadouro de tudo quanto por cá havia de mais abjecto na espécie humana, salvando excepções. Purgámo-nos dos malandrins, dos larápios e ineptos. Com o decorre dos tempos (…)a monomania invadiu também os sãos, os válidos, os trabalhadores, e aquilo que até aí foi um benefício e como que uma vassoura desinfectante, tornou-se logo em flagelo, depauperando-nos dia a dia com a brutalidade de um cataclismo.» (p, 89)

Mesmo em textos oficiais é possível encontrar este tipo de discurso, num ofício  do governador civil ao Ministério (10 de Agosto de 1854): (…) por ora esta Ilha por forma alguma se ressente da falta de gente que tem emigrado, sendo certo que grande parte da gente que ultimamente daqui tem sahido, foi um grande serviço prestado a esta ilha que se vio livre de muito vadio e gente de máos costumes, cuja auzência deixou este Districto na mais profunda paz».

E já no início do século XX, A Persuasão (10 de Outubro de 1906) noticiava o embarque de 251 passageiros para as Ilhas Sandwich (o nome histórico do actual Havai), concluindo com a delicadeza de quem pretende manter «limpo» o discurso: «agora, como antecedentemente, esta emigração limpa a nossa sociedade de bastantes impurezas.»

Até que ponto este discurso higienista não denega ou relativiza a confissão do poder público quanto à sua eventual impotência para travar as redes de «exportação de gente» durante o século XIX? Como explicar essa  espécie de indiferença que atinge a sociedade e de que Mont’Averne de Sequeira  nos dá conta?:

«O monstro [o engajador] fica radiante, quando vê o rebanho de infelizes conduzido para bordo como carneiros, que se exportam!

«Tudo se passa nas bochechas das autoridades locais, que são impotentes para barganterias deste quilate. O povo assiste sereno a essas procissões de infelizes, e os grandes homens comentam o facto à noite, à hora das torradas, demonstrando que ele é impróprio da civilização dos nossos tempos, e o espectáculo indigno deste século de eternas luminárias.» (Sequeira, 1994: 104)

Eu não tenho respostas. Estas exigiriam outras leituras extensivas e de conjunto que não se coadunam com o tempo desta comunicação.

Mas se no Relatório da Administração do Distrito de Ponta Delgada para 1861 se escreve que «felizmente  o nefando tráfico da escravatura  branca cessou neste distrito há quase três anos.» (Miranda, 1989: 62), então podemos voltar a fazer mais perguntas:  se foi possível resolver o problema, porquê tanto tempo para fazê-lo? E como explicar  que no início da década de 1890 a emigração clandestina se situe acima das duzentas pessoas por ano no distrito de Ponta Delgada, sendo ainda mais elevada no da Horta?  (Sequeira, 1994:151)

Por isso,  remeto  de novo à Escrava Açoriana e ao modo como aí se constrói uma história ficcional ancorada no conhecimento e nos parâmetros de uma época  açoriana funesta.

Munida de um terço e de um exemplar do  Amor de Perdição surripiado no Convento da Esperança,  Rosário refaz a  percorre a rota  de alguns lugares da emigração açoriana no Brasil, com as suas vicissitudes e desventuras, com as perturbações semânticas de um tempo em que o substantivo ilhoa se tornara sinónimo de prostituta (Ramalho Ortigão tinha escrito sobre essas coisas em 1872). E se Rosário  pôde regressar à ilha (mesmo como outra mulher), isso é ainda um sinal de sorte, uma excepção

No final, já no século XX, quando a história se repetir e a representação literária se entrecruzar com a representação pictórica, quando a história de A Escrava Açoriana se fundir com Os Emigrantes, de Domingos Rebelo, será tempo de concluir que a emigração é uma doença …hereditária.

Urbano Bettencourt

38.º Colóquio da Lusofonia ( Ribeira Grande, 8.10.2023)

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Devo ao meu saudoso amigo e historiador Carlos Cordeiro a cedência da documentação oficial aqui utilizada.

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REFERÊNCIAS

Arquivo Histórico do Governo Civil de Ponta Delgada. Livro de Registo de Correspondência com diversos Ministérios.

MAIA, Pedro Almeida (2020), Ilha-América. Ponta Delgada, Letras Lavadas.

_________________(2022), A escrava açoriana. Ponta Delgada, Letras Lavadas.

MIRANDA, Sacuntala de  (1989), O Ciclo da Laranja e os “gentlemen farmers” da Ilha de S. Miguel. Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada.

SEQUEIRA, Mont’Alverne de (1994), «A emigração dos Açores»,  Questões Açorianas, 2.ª edição. Ponta Delgada, Jornal de Cultura, pp. 87-154. [1894].

Web

JOÃO, Maria Isabel,  Economia e sociedade açorianas em meados do século XIX


[1] Uma breve anotação em A Escrava Açoriana dá contadesta realidade: «No Cais Velho, embarcavam Rosário, Adelaide e mais oito emigrantes ilegais, rumo ao Porto dos Batéis, nas Feteiras. Não cabia mais ninguém naquele boca aberta enjoando a peixe. Mas, no Cais Novo, ali à distância de um olhar, com direito a manobra de bagagem no moderno guindaste a vapor, embarcavam garbosos viajantes e os seus casacos dispendiosos. Por força da ironia, seguiriam todos para o mesmo navio fundeado ao largo do porto.» (Maia, 2022: 48-49)

José Martins Garcia

 – a linguística vai à guerra

No interior da narrativa de Martins Garcia, a instituição militar e a guerra em África  constituem um domínio temático de relevo e bem identificado, ao lado de outros como o insular açoriano, sobretudo, e o lisboeta. Objeto de tratamentos narrativos diversificados, os dois tópicos coincidem, todavia, naquilo que é uma  perspetiva comum de crítica dos  mecanismos e procedimentos militares que se traduzem, em última instância, na anulação do homem, no seu  rebaixamento a uma condição de pura irracionalidade.

Lugar de Massacre é, neste aspeto,  o romance de uma experiência-limite nos pântanos guineenses, escrito num registo demencial em que o burlesco e o grotesco enquanto estratégias de deformação propiciam a visão de um universo de aviltamento e  de exposição da  animalidade que subsiste  no fundo de cada homem. Experiência tão mais (auto)destrutiva porquanto ela se polariza em Pierre d’Avince, uma personagem cujo ceticismo radical o impede de tomar uma decisão, ainda que uma  lucidez extrema lhe permita ver claramente visto o desastre coletivo  que atinge todos,  brancos e  negros, civis e militares, milicianos ou de  carreira.

Mas a verdade é que o tema atravessa toda a obra de Martins Garcia e surge mesmo já em Katafaraum é uma nação,[1] um conjunto de «crónicas» e narrativas publicado em fevereiro de 1974 e cujo pendor crítico e satírico é dominante, mesmo naqueles casos em que uma «escrita oblíqua» exige um processo de leitura em moldes  idênticos.2 Nesta obra, o último dos três «ciclos» da segunda parte intitula-se  «Linguagem» e é composto por duas narrativas:   «Competência» e «Performance».

Para quem fez a travessia linguística dos anos setenta e oitenta torna-se fácil identificar a sombra de Chomsky neste  jogo de títulos, que recuperam  dois conceitos provenientes da gramática generativa:  o primeiro respeita ao «saber interiorizado que os falantes de uma língua possuem»  e que lhes permite comunicar,  realizando, pondo em prática  novos  enunciados em novos contextos (ou seja, a performance).3

Já na primeira secção da obra uma crónica intitulada  «Elogio da Competência» convocava explicitamente Noam Chomsky: «Vinte séculos antes de Chomsky, a elite katafaraónica, em cuja sabedoria se haviam depositado as eternas verdades, já tinha estabelecido uma distinção categórica entre «competência» e «performance» (Garcia, 2017: 75). A ironia começa com a marcação cronológica «antes de Chomsky», que permite a redução às iniciais  a.c., que ambiguamente reenviam também a «antes de cristo», assinalando o estatuto de que o divino Chomsky desfrutava por esses tempos.  Depois, através de  uma série de jogos etimológicos e semânticos (por vezes, de pura tautologia) o autor procede a um exercício de composição crítica sobre os costume e os modos de vida em Katafaraum, os rituais de aprendizagem e a aquisição de competência com vista ao desempenho de uma profissão, com a consequente ascensão numa sociedade  hierarquizada, do competente-mínimo ao competente-crítico, cujo mérito «era directamente proporcional ao número de vítimas» (p. 76).

Para lá disso, a investigação etimológica sobre  «performance» leva a descobrir na palavra o efeito de uma metátese: a palavra original é «preformance», derivada de

«pre + formar + ânsia; isto é, a ânsia de (se) formar antes, melhor dizendo, a ânsia de nascer formado. Por  outro lado, «preformar» mediante queda do p inicial (queda justificada pela evidente imoralidade daquele fonema!) pode muito bem significar «reformar». E aqui é que bate o ponto: a PREformance é nem mais nem menos do que o estado de quem nasce reformado.» (idem, p. 76)

O desenvolvimento irónico levado a cabo pelo narrador revela-nos que esse privilégio de nascer reformado  dependia,  do «grupo sanguíneo do katafaraónico», o que é uma forma de denunciar a existência de uma casta familiar no interior da sociedade, pois,  conclui, os «preformados-reformados não estavam sujeitos a qualquer prova de competência. Nasciam cultos, eruditos, sapientes, indiscutíveis, realizados, reformados, preformados, performados.» (idem, p.77)

É diferente o tratamento a que são sujeitos os conceitos «competência e «performance» na última parte de Katafaraum é uma nação. Transcontextualizados ironicamente, eles recobrem duas fases da experiência militar em espaços e tempos diferentes (a da formação e aquisição de competências e a da aplicação prática dos saberes, a da «performance»); essas fases ou momentos articulam-se  mediante a personagem Ramalho, que «migra» de uma para a outra, soldado-cadete na primeira situação e já alferes miliciano na segunda.

Embora sem referências explícitas aos lugares da ação, algumas informações indiretas e alusões permitirão identificá-los como Mafra(no tempo da instrução) e, depois, a Guiné (em situação de combate) e essa ocultação será apenas um dos subterfúgios utilizados para não provocar a atenção (e a intervenção) desses leitores vigilantes que eram os censores institucionais. A  isso poderá juntar-se igualmente, na primeira narrativa, a existência de personagens com nomes impronunciáveis e estranhos ao corpoe ao sistema  da língua portuguesa, como Tww, Gwlyx, Btyx, por exemplo.4 Mais do que a simples identificação dos lugares, importa, no entanto, ver como em ambos os casos se procede a uma exploração e aprofundamento do incongruente e do absurdo da lógica militar,  acabando esta  por desembocar na  anulação do que poderemos considerar a dimensão individual e pessoal das personagens.  

Em «Competência», sobretudo, é manifesta esta última vertente, com a representação do carácter artificial de toda a instrução prática com vista à aquisição da competência: a sua natureza de guerra planificada e submetida a um jogo de ordens e contraordens, um puro simulacro mecanizado5  cujo resultado final se traduz no burlesco que o narrador se encarrega de explicitar pontualmente: «o bravo alferes mandou fazer alto, para improvisar a vitória»  (Garcia, 2017: 142). Num  processo diferente, a descrição pormenorizada amplifica e denuncia esses jogos de guerra, perfeitamente previsíveis, aliás,  e suscetíveis de serem contornados pelo calculismo e pela astúcia individual:

Circulavam terríveis boatos quanto à ferocidade do inimigo: viria pela calada, iludiria as sentinelas inexperientes, destruiria as barracas, faria prisioneiros e mortos simulados. Diziam os soldados-cadetes melhor informados que, em tais circunstâncias, o melhor era ser-se imediatamente morto. O inimigo deixava os mortos no solo e estes teriam apenas a maçada de reconstruírem as barracas; quanto aos prisioneiros, tinham de acompanhar o inimigo até a um problemático acampamento, às vezes situado a muitos quilómetros de distância. Depois dum dia esgotante, mais valia a morte simulada. (Garcia, 2017: 148).

A incongruência e a dimensão burlesca da narrativa assentam, implicitamente, na distância que se sabe existir entre uma guerra simulada e uma outra verdadeira, a sério, imprevisível e impossível de conter em absoluto dentro de modelos pré-definidos, e sem que se possa estabelecer entre as duas uma relação de implicação e de causalidade no plano da eficácia. A situação inesperada do soldado-cadete Ramalho, «muito embevecido pela beleza do poente» em pleno campo de batalha, atesta a pouca consideração que lhe merecem a dor resultante da lesão física e, sobretudo, o desenrolar dos instrutivos acontecimentos bélicos.

Mas o burlesco assenta também, a nível explícito, nos jogos efetuados com o lexema «competência», na deriva semântica a que é submetido no fluir da narrativa e nas articulações textuais que vai estabelecendo. É no momento em que se vê «munido da competência advinda das grandes manobras» (Garcia, 2017:151) que o soldado-cadete Ramalho se descobre incompetente para regressar ao quartel, devido à fratura do pé direito.

E  é também um jogo com o vocábulo-título que provoca o bloqueamento da ação e a confirmação do absurdo da burocracia militar. Ao dirigir‑se ao alferes para solicitar um meio de transporte adequado à sua situação de lesionado, Ramalho recebe como resposta: «Apresente-se ao nosso capitão e exponha-lhe o caso… Isso está acima da minha competência!» (Garcia, 2017: 152); apresentando-se ao capitão, este devolve-o à procedência com uma resposta de sentido contrário: «Isso é para ser resolvido pelo seu alferes. Está abaixo da minha competência!» (idem, 152). Perdido entre estes jogos de linguagem e as sucessivas manifestações de não competência, empurrado de um para outro agente da hierarquia militar, o soldado-cadete Ramalho é um joguete de diferentes poderes individuais, privado de palavra, que só virá a ter quando for promovido a alferes, mas num contexto de guerra efetiva em que a palavra já pouco peso tem no cômputo da vida e da experiência imediata.

Uma parte do sentido geral de «Performance» é função do contraste que permite estabelecer com a narrativa «Competência», numa dicotomia existente já no contexto metalinguístico original e transposta aqui para o domínio da teoria (militar) e da realização prática. A existência de uma mesma personagem, Ramalho, como protagonista de ambas as narrativas permite interpretá-las sequencialmente como uma história única em dois tempos e dois espaços, separados por uma elipse que justifica esta transposição e a promoção do soldado-cadete a alferes miliciano.

«Performance» abre com a chegada de Ramalho a Takiá, «mal refeito do pifo e muito picado dos mosquitos, com os olhos inchados e os braços quase em carne viva» (Garcia, 2017: 153). Apesar da natureza críptica ou camuflada do topónimo, alguns elementos avulsos do discurso descritivo ajudam a descodificá-lo como sendo a Guiné‑Bissau (na altura, apenas a Guiné portuguesa do discurso oficial): o esplêndido verde, a planura enorme e, sobretudo, a presença do vocábulo «bolanha».6 Mas esse é apenas o reverso paisagístico do reduzido espaço do quartel e nem sequer totalmente pacífico e tranquilizador, pois nele se escondem perigos vários, o que torna o incapaz de motivar o olhar contemplativo ou, pelo menos, demorado do protagonista: funciona apenas como moldura exterior aos muros do quartel, em cujo interior desfilam, afinal, as personagens e se desenrolam os pequenos episódios de um quotidiano que o alferes miliciano Ramalho vai descobrindo progressivamente, por entre a estranheza e o distanciamento ou sobranceria.

A iniciação do novato alferes no mundo real da guerra (isto é, não encenado, não teatralizado) propicia a revelação de um microcosmo em que o rigor e o ritual da disciplina militar alternam com o desmazelo seu contrário. Além disso, as questiúnculas interpessoais, próprias de um espaço claustrofóbico e da situação de desconforto físico e psicológico, contribuem para o mau ambiente humano e fomentam a existência de intrigas, pequenos rancores e invejas. Por vezes, um discurso narrativo despojado e seco acentua o desgarramento e a clausura individual das personagens no decurso de um tempo arrastado, de tédio, em que a ação se reduz a uma acumulação de gestos mecânicos e desarticulados entre si, num fluir monótono e sem sobressalto interior:

O alferes Ramalho meteu-se no seu posto. O major exortou o cozinheiro a pôr mais sal na comida. O comandante foi dormir a sesta entre os seus bidões. O médico bocejou. O capelão agarrou no breviário. A tarde acumulava nuvens. A transpiração progredia. O tornado avizinhava-se. O prisioneiro negro balouçava os pés. (Garcia, 2017: 168).

Num contexto destes, a figura do alferes Ramalho constitui um elemento dissonante, em virtude do carácter excessivo de dois comportamentos fundamentais: a displicência com que se refere aos assuntos estritamente militares e deles trata e, por outro lado, o consumo de álcool, em sessões regulares, demoradas e excessivas. Se um e outro podem ser considerados como a recusa de acomodação e de conformação com um sistema em que a personagem foi integrada à força e em cujos valores não se revê, o segundo deles não deixa, apesar de tudo, de traduzir ambiguamente um processo de alheamento e de autodestruição, assinalado pelo narrador: «A essa hora [o alferes Ramalho] encontrava‑se geralmente bêbado, preso dum embrutecimento pouco visível exteriormente, à força de ser por dentro uma forma de resistir.» (Garcia, 2017: 170). O embrutecimento aqui referido, sem a dimensão avassaladora que atinge em Lugar de Massacre, traduz a progressiva degradação da personagem, a sua desumanização e a aproximação a um estado de irracionalidade que tem muito a ver com a condição animal.

O desfecho de «Performance» ocorre durante um ataque ao quartel pelas forças inimigas e durante o qual o alferes Trabuco, um veterano calejado pela guerra e pelas armas, se mantém abancado junto ao churrasco e rodeado de cerveja; a figura grotesca que o alferes Ramalho avista, «uns dentes salpicados de bocados de frango» (Garcia 2017: 172), representa esse embrutecimento da personagem numa situação em que a voracidade se sobrepõe à ameaça da morte e ao instinto de defesa.

No final, Ramalho e Trabuco envolvem-se numa briga despropositada (se a considerarmos fora de um quadro de alcoolismo) que assinala a eficácia devastadora da guerra sobre o homem, anulando-o, reduzindo-o a uma dimensão animal: «As metralhadoras insistiam na sua interminável competência. Bêbedos, incapazes de se susterem nas pernas, o veterano e o novato chafurdavam na lama.» (Garcia 2017: 174).

A citação irónica do vocábulo «competência», desviado do âmbito humano para o das armas, permite estabelecer um contraste com o carácter grotesco e sórdido da situação em que se encontram os dois militares, atordoados pelo álcool, rebaixados à condição de animais de pocilga. Representando simultaneamente o fim desta narrativa e do ciclo «a Linguagem», o excerto retoma os títulos das duas histórias que integram este último, explicitamente o da primeira e de modo implícito o da segunda, «Performance», mas invertendo-lhes o sentido: num caso, a competência é transferida para o campo das armas (e, entre elas, as do inimigo); no outro, a «performance» está reduzida a uma não competência, a uma luta pessoal degradante, na lama, enquanto a guerra efetiva se desenrola lateralmente, à margem.

A recontextualização irónica do léxico da teoria linguística traduz, em primeiro lugar, uma degradação do «sentido sério», científico,  que possui no contexto original, ou seja, a primeira vítima da ironia de  Martins Garcia é o próprio discurso metalinguístico (dupla ironia, por vir de um autor que era professor de introdução à linguística).

Em segundo lugar, a  utilização desse léxico no âmbito discursivo do universo militar põe a descoberto a sua não significação, o seu vazio semântico: a competência militar pretensamente adquirida acaba por não se traduzir na performance esperada. A narrativa das experiências no pântano guineense atesta isso mesmo e os comportamentos individuais demonstram exatamente o oposto dos objetivos inerentes à instrução, a preparação técnica torna-se inoperante quando confrontada com a visão concreta da guerra, do seu absurdo, da sua irracionalidade, da anulação da dignidade humana. Tudo se resume a linguagem oca,   o discurso oficial sobre «a pátria» atola-se com ela no lodo guineense.

Urbano Bettencourt

(Esta é uma versão ampliada da comunicação que apresentei ao XXIII Colóquio da Lusofonia, 27-31 de março, 2015, Fundão. Está incluída no meu livro de ensaios Sala de Espelhos. Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2.ª edição, 2022)

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NOTAS

[1] Katafaraum é uma nação e Katafaraum Ressurecto foram reunidos num único volume, Katafarauns, na reedição das obras de José Martins Garcia pela Companhia das Ilhas (2017). As minhas referências e número de página reenviam para esta última edição.

2  Na nota que escreveu para a 2.ª edição do seu livro (maio de 1974), José Martins Garcia explicita a criação do termo KATAFARAUM, melhor dizendo, as condições em que o vocábulo se lhe impôs, bem como os respetivos sentidos: desde a ressonância bíblica de Cafarnaum até ao processo linguístico de amálgama de «cada (kata, em grego) um fareja um», uma divisa adequada aos tempos do Estado Novo.

3 António Lopes: s.v.  «Competence/Performance, E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, http://www.edtl.com.pt, consultado a 14 de fevereiro de 2015.

4  Recorde-se que a primeira edição de Katafaraum é uma nação teve lugar em fevereiro de 1974. Esses nomes sinalizam a realidade de uma guerra efetiva, mas não pronunciável, impedida de ser nomeada fora dos ditames do discurso oficial. Numa entrevista ao jornal Açores, o próprio autor deu conta desses subterfúgios textuais em Lugar de Massacre (nomes estrangeirados, locais mais ou menos camuflados), por estar convencido de que não conseguiria publicar o livro em Portugal (Garcia, 1993: 9). Em todo o caso, como se vê, esses expedientes dissimulatórios vinham já de Katafaraum é uma nação, onde nos deparamos também com exemplos de antropónimos estrangeiros (Durand, Smith, Ramon) e de topónimos camuflados, (Takiá, Takau ou, no limite, um mero X). Na mesma entrevista, Martins Garcia manifesta a sua estranheza quanto ao facto de este livro não ter provocado a interferência da polícia política junto da editora.

5 Esta «paródia de guerra», como é designada pelo narrador, consiste num exercício prático com a duração de uma semana e destinado a proporcionar aos instruendos o contacto com o terreno e a testar também o nível e a eficácia da aprendizagem. A passagem do tempo é assinalada pela transformação progressiva das personagens e do seu aprumo, observável a partir do ponto de referência do incipit narrativo: «Saíram, barbeados, engraxados e seriamente inócuos, para o reino da competência.» (Garcia, 2017:137); posteriormente, os soldados-cadetes serão descritos como «ainda barbeados, mas desengraxados e seriamente abatidos» (idem, p. 140), mais tarde, «mal barbeados, completamente desengraxados, seriamente amarfanhados» (idem, p. 141) e, finalmente, «barbudos, sujíssimos e  seriamente deprimidos» (p. 150). O grau de competência é inversamente proporcional ao grau de degradação pessoal.

6 Termo do léxico guineense que designa um vasto terreno pantanoso, geralmente nas margens ou proximidade dos rios, e próprio para semear arroz, embora não necessariamente utilizado para esse fim.

REFERÊNCIAS

GARCIA, José Martins (2017), Katafarauns. Prefácio de João Pedro Porto. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas.

_________________(42016) Lugar de Massacre. Prefácio de João Nuno Almeida e Sousa. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas.

_________________ (1993) «Autonomia da Literatura Açoriana só com a Independência dos Açores»,   jornal Açores, 23 de setembro, pp. 8-11.


 

Madalena Férin revisitada por Vasco M. Rosa

Para começar, antecipando  conclusões e um juízo,  direi que É preciso romper o amanhã. Madalena Férin revisitada é um livro deveras singular, e já estou  a decalcar  o título do  seu primeiro capítulo («Uma família deveras singular»). .

Por um lado, porque não rejeita o elemento genealógico e familiar da autora – e este dado é importante para se «compreender» (ao menos em parte) a actividade literária de Madalena Férin,  enquadrada por uma família que de forma diversa e plural deixou marcas na história cultural e artística dos Açores. A  componente biobibliográfica integra uma introdução, chamemos-lhe assim, em que Vasco Medeiros Rosa procede a uma revisitação da escritora, destacando aspetos da sua personalidade e actividade literárias e da sua presença em antologias. Além disso, uma   investigação minuciosa, permitiu a Vasco Rosa reconstituir a rede de empenhamentos, estímulos e  iniciativas pessoais,  mas agindo em rede, que proporcionaram  a Madalena Férin a sua estreia literária –  Armando Côrtes-Rodrigues, Eduíno de Jesus, Ruy Galvão de Carvalho, mas também  João Afonso (na Terceira), em torno de uma instituição como o Instituto Cultural de Ponta Delgada. Finalmente, porque procede a um inventário  das «leituras públicas»  que a obra de Madalena foi suscitando ao longo do tempo, completando-se o livro com  um conjunto de dispersos,  entre eles, o opúsculo de 1958, Imagens da Grécia, um relato de viagem,  e a entrevista concedida a Álamo Oliveira em 1990).

Nos anos 70 do século passado, um teorizador literário alemão (Hans Robert Jauss), perfeitamente sintonizado com as correntes que situavam o leitor no centro do fenómeno  literário, escrevia que a «História da literatura é um processo de recepção e produção estéticas que se cumprem na actualização de textos literários, através do leitor que lê, do escritor que produz e do crítico que reflecte.» .

Sem entrar nos meandros e nas implicações daquilo a que Jauss chama a «estética da recepção» (e a que talvez fosse mais apropriado chamar «teoria da recepção»), deve referir-se  aqui a importância de que se revestem para a história literária as recensões, os ensaios, mesmo as notas, as paráfrases que se ocupam de uma determinada obra.

Situados num tempo determinado, esses textos atestam os parâmetros estéticos do momento, a começar pelos do leitor-recenseador,  e em relação aos quais a obra pode ser liminarmente rejeitada ou bem acolhida, lida  sob uma  ou outra  perspetiva semântica e discursiva, colocada numa linha de continuidade ou de inovação. No conjunto, acabam por constituir uma rede  de  abordagens e interpretações, concretizando a pluralidade de leituras a que uma obra se abre, mas registando também  as  coordenadas ideológicas e estéticas da época e de quem lê ou recenseia.

O leitor actual pode, com este livro, percorrer a história da recepção da obra de Madalena Férin, tendo ao seu dispor as sucessivas interpretações que o tempo sedimentou  e permitem agora uma leitura muito mais abrangente e complexa. A começar, naturalmente, pelo prefácio que Eduíno de Jesus escreveu para os Poemas (1957), livro inaugural da poetisa. 

Trata-se de um texto ainda hoje iluminador, pela clareza e assertividade, pela contextualização dessa poesia no meio-século açoriano, convocando também uma outra voz feminina, a da faialense Otília Frayão (só muito recentemente editada em livro). Um meio-século de que o próprio Eduíno era agente efectivo, enquanto membro dessa geração que pelos anos 40-50 assinalava em Ponta Delgada a sua presença e a sua luta em prol do modernismo que tardava em chegar. Por isso, é possível a  Eduíno reconhecer que os Poemas de Madalena Férin representavam «um dos casos mais interessantes da poesia moderna dos Açores.»

De resto, encontramos nesse  prefácio, e na sua teorização sobre a especificidade do discurso poético, alguns tópicos recorrentes em outros textos publicados no jornal A Ilha dessa época e com os quais Eduíno tentava chamar à boa razão do modernismo aquelas «almas embaraçadas» (Gil Vicente) que se achavam capazes de fazer poesia moderna cortando a prosa em bocadinhos ou continuavam entrincheiradas numa concepção da poesia como uma colectânea  de espirros emotivos (a metáfora é minha, não de Eduíno).

Os restantes vinte e  seis textos (assinados por dezassete homens e três mulheres) registam cronologicamente as diferentes modalidades expressivas e discursivas que a obra  de Madalena foi ganhando nos seus diferentes livros, entre a poesia e a prosa narrativa,  e os modos como tudo isso foi lido. Ainda  que a «disponibilidade  crítica» se tenha reduzido na parte final, ou talvez por isso mesmo, importa referir aqui o ensaio de Ana Cristina Correia Gil (já de 2022), um  trabalho de largo espectro  sobre a   obra de Madalena (sem, todavia,  a contemplar  na totalidade) e que fecha bem o arco interpretativo começado  por Eduíno de Jesus seis décadas antes.

Num momento em que o Instituto Açoriano de Cultura acaba de publicar a poesia completa de Madalena Férin (Violinos ocultos sob a relva, org. de Ângela de Almeida, 2023),  este livro de Vasco Medeiros  Rosa constitui um precioso trabalho para uma aproximação à obra da autora, e  um contributo fundamental para a compreensão de um segmento  da história cultural dos Açores,  da sua literatura, em particular. Felicito-o por isso.

Como também felicito  a Câmara Municipal de Vila do Porto pelo apoio ao projecto de Vasco Medeiros Rosa e ao livro daí resultante.  «Quem honra honra-se também», escreveu Pedro da Silveira, a propósito das celebrações que ele esperava viessem a ser feitas nas Flores  por ocasião do centenário de Alfred Lewis em 2002.

A  edição de   É preciso romper o amanhã. Madalena Férin revisitada constitui  um gesto de reconhecimento e homenagem por parte da outra ilha de nascimento de Madalena Férin, ou talvez a única,  se pensarmos,  com Marguerite Yourcenar, que «o  nosso verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar de inteligência sobre nós próprios». E acerca disto, a obra de Madalena tem momentos bastante elucidativos.  

O retrato de Madalena Férin reproduzido na capa, da autoria de Victor Câmara,  constitui ainda um outro  sinal das cumplicidades literárias e artísticas de um  tempo insular.   

Urbano Bettencourt

 

ROSA, Vasco Medeiros  (2023), É preciso romper o amanhã. Madalena Férin revisitada. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas.

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Texto de apresentação do livro em Ponta Delgada (24.7.2023) e publicado no Diário dos Açores, de 3 de Agosto de 2023.

PEDRO DA SILVEIRA


O Boletim do Núcleo Cultural da Horta (2022) dedica a sua capa a Pedro da Silveira (com uma foto da autoria de Manuela Rêgo, responsável pelo excelente portefólio incluído no corpo da revista).
É uma imagem que antecipa o dossiê dedicado ao poeta e investigador florentino, que coordenei a convite da Direcção do próprio Núcleo.
São cerca de 160 páginas de texto e fotos, que representam a resposta de amigos, ex-colegas e investigadores que puderam e quiseram responder ao meu convite para participarem neste dossiê de homenagem e (mais uma) aproximação a Pedro da Silveira (apenas o texto de Victor Rui Dores foi enviado directamente ao Núcleo Cultural da Horta).
Sem menorizar qualquer dos contributos, chamo a atenção para o texto de Ernesto Rodrigues: uma espécie de dossiê dentro de outro, com o relato pormenorizado do episódio lamentável que envolveu António Valdemar e o semanário «Expresso» (9.10.2021), uma atoarda que o próprio Ernesto Rodrigues e Teresa Martins Marques «desmontaram» com rapidez – em nome da verdade contra a infâmia e contra o jornalismo sensacionalista. Fica o registo para memória futura.
A todos os que participaram, o meu agradecimento:
Vasco Rosa, Luís Filipe Vieira, Leonardo Sousa, Ângela Almeida, Álamo Oliveira, Victor Rui Dores, Urbano Bettencourt, Ricardo Manuel Madruga da Costa, Diniz Borges, José Guilherme Reis Leite, Carlos Bessa, Leão Lopes (Cabo Verde), Onésimo T. Almeida/George Monteiro, Artur Teodoro de Matos, Ana Maria Martins, Luísa Ducla Soares, Manuela Rêgo, Ernesto Rodrigues. 

Quesada, Morales, Canárias (e um parágrafo eliminado )

A primeira edição de Mesa de Amigos, de Pedro da Silveira, ocorreu em  1986 nos Açores; o volume correspondia ao número 46 da colecção Gaivota, da responsabilidade da Direcção Regional dos Assuntos Culturais. Era um conjunto de «versões de poesia», segundo a expressão do autor, que a preferia a «traduções». Resultado de cerca de três décadas de trabalho, Mesa de Amigos reunia  cerca de 60 poetas de seis línguas.  

No Posfácio, Pedro da Silveira expende uma série de considerações sobre o seu modus operandi,  as dificuldades em manter-se «próximo» de aspectos formais sem atraiçoar os conteúdos, o auxílio que lhe chegou de vários lados, refere de passagem poemas já anteriormente traduzidos para português (e nalguns casos discordando do resultado obtido). No penúltimo parágrafo, e em jeito de aviso à navegação interna, Pedro da Silveira chama a atenção para o facto de a sua Mesa incluir um poeta das Canárias, Alonso Quesada, aproveitando o ensejo para alargar o âmbito das suas considerações e reparos:

«Aos leitores açorianos, incluídos os também poetas, faço notar a presença de um poeta das ilhas Canárias, que foi lá, com Tomás Morales, dos maiores da sua geração, a do Modernismo hispânico. Nem ele nem Morales foram conhecidos entre nós no tempo em que publicaram as suas obras, o que, a ter-se dado, talvez houvesse contribuído a não termos, nessa altura, a pobreza  de vida literária que tivemos. E já agora acrescento que mesmo hoje nos seria assaz benéfico estarmos atentos à tão viva vida cultural das Canárias – tão viva pelo que toca à criação poética como à da ficção, ambas de acentuada marca local mas de olhos sempre atentos ao mundo, e ainda no campo das artes plásticas. Na poesia, Quesada e Morales têm antecessores notáveis, e os sucessores, de Luiz Álvares Cruz aos surrealistas (o manifesto dos surrealistas canários apareceu em 1935!) e posteriores poetas, também são muito dignos de se conhecerem, de os conhecermos neste outro arquipélago do Atlântico. Estarmos em dia com certas burondangas importadas de Lisboa ou, por via de Lisboa, com o que teimam lá em importar de França, não só não basta como, pior!, serve a tornarmos à indigência de antes de Nemésio.»

Deixo aos meus amigos do outro arquipélago do Atlântico (a sul) a avaliação crítica e os reparos ao  (des)acerto do olhar de Pedro da Silveira sobre a literatura deles. Mas gostava de ressalvar o seguinte: quatro décadas depois, esse parágrafo  era ainda a manifestação do  mesmo impulso (da mesma curiosidade ) que,  nos anos quarenta, o levara a aproximar-se da literatura cabo-verdiana e adensar-se nela, trazendo para Ponta Delgada e para o jornal A Ilha a moderna expressão literária daquele arquipélago (isto é, a da  geração claridosa). Uma descoberta pessoal, mas com implicações naquilo que, para Pedro, devia ser uma literatura açoriana atenta ao seu tempo literário, social e político também.

Ora, esse parágrafo desapareceu na segunda edição (Assírio & Alvim, 2002), destinada a um público mais alargado, seguramente pouco ou nada preocupado com a história literária dos Açores e as suas mazelas internas. Recuperá-lo aqui é ainda uma forma de atestar a natureza de um espírito errante e em contínua busca  de espaços culturais diversos e, ao mesmo tempo,  preocupado com o  (bom) andamento da literatura   açoriana.

U.B.

Falar de ilhas

 – de quais? e como?

«O meu desejo abarca as ilhas todas do Mar.»
Pedro da Silveira, Sinais de Oeste

A epígrafe parece-me congregar os tópicos propostos para este painel: natureza, ilha e poesia. Na verdade, o discurso poético constitui-se o lugar de projecção de uma pulsão desmedida e, no mesmo passo, antecipa-se como o lugar futuro das «ilhas de palavras» que a experiência concreta resgatará à utopia de um pretenso conhecimento absoluto.
A poesia de Pedro da Silveira navegou intensamente em busca dessas ilhas, e na diversidade das suas descobertas ou, antes, dos modos como as soube dizer, abre caminho para um questionamento mais genérico sobre a natureza dessa realidade a que chamamos ilha.
De que falamos, afinal, quando falamos de ilhas? – poder-se-ia perguntar, parafraseando Raymond Carver. De redutos físicos que arrancam da sua referencialidade para configurarem no poema uma concretude histórico-social e geográfica? De territórios perdidos no tempo e no espaço e de que restou apenas um traço na memória ou a que se regressa para reconhecer quão estrangeiro se é na própria terra? De meros pontos avistados no horizonte e supostos na sua intimidade inacessível? De espaços sem geografia concreta, simples construções erguidas com a matéria verbal de que são feitas? Ou, no limite, a ilha como metáfora da própria poesia, da condição insulada da sua génese e criação?
Antero de Quental (1842-1891) sonhou-se algures no Oriente, numa ilha incerta, de cores e perfumes talvez colhidos em Baudelaire, paisagem edénica sobre a qual se recorta uma Eva profana não ameaçada por qualquer serpente e em que um Adão sem criador pode entregar-se livremente a um «cismar sem fim», fechado numa ilha dentro de outra ilha: «Sonho-me às vezes rei, nalguma ilha, / Muito longe nos mares do Oriente (…)» . Em Antero, o sonho é porta para um processo de desdobramento do eu lírico, de projecção num outro e de fuga para um espaço diferente, susceptível de proporcionar experiências para lá do quotidiano concreto. E nesta ilha literária a Oriente havemos de encontrar – e encontrou ele – um refúgio contra o tumulto dos dias, contra a história e as suas contingências.
O poema «Momento» de Pedro da Silveira (1922-2003) abre também com uma inscrição paisagística, em que são detectáveis, no primeiro verso, os traços empíricos da Fajã Grande (ilha das Flores) e do ilhéu do Monchique (o extremo ocidental da Europa):

A baía, o Monchique, o outeiro, as casas…
Batidas do vento as canas são vagas verdes.

De imediato, porém, o discurso introduz um elemento semântico contrastante que reencaminha a leitura para um outro plano:

Mas o que eu vejo não é a paisagem, bela ou feia.
O que eu vejo
são estas mulheres vestidas de preto,
o rosto escondido num lenço preto,
as mãos deformadas de cavar a terra.
Novas, velhas, sem idade.

Sem culpas nem pecados.
Resignadas.

Podemos tomar este poema como uma assinatura e um posicionamento pessoais, na medida em que se anula o foco da contemplação da paisagem para centrar o olhar e a expressão poética no domínio humano e social, procedimento tão mais notório quanto se estabelece em ostensiva oposição ao falso arranque do poema ou ao rumo que pareciam indicar os dois versos iniciais. À distância de 70 anos, o poema contrapunha à futura ideologia turística (hipertrofiada hoje pela profusão tecnológica) a realidade humana e social, a atenção à experiência penosa de uma comunidade, à sua luta quotidiana pela sobrevivência. A dimensão estética é, neste caso, inseparável do compromisso literário com o outro.
O factor histórico e as suas vicissitudes marcam de forma tão impressiva o primeiro livro de Pedro da Silveira, A Ilha e o Mundo (1952), muito focado na ilha das Flores. Mas as ilhas continuarão motivo e objecto poético na escrita posterior do poeta: não só a ilha primeira, cada vez mais distante e perdida, mas também as outras, (re)visitadas, descobertas ou simplesmente avistadas; elas serão objecto de indagação, representadas na sua espessura histórica ou assinaladas apenas no traço cultural que as identifica e singulariza. Um exemplo é o «Aeropoema da Grã Canária» (Silveira, 2019: 307):

Alturas da Grã Canária
ainda há pouco avistada,
cinzento, roxo, castanho…
agora só tenho, azul,
o mar franzido, lá em baixo.

Sei que era a Grã Canária.
Da Grã Canária não sei
nem do seu gofe provei.

Integrado num conjunto intitulado «Ilhas avistadas», a sequência de traços físicos «avistados» é interrompida para registar algo não directamente observável, mas constante da informação do poeta sobre a cultura da ilha, o gofe (trazida transversalmente, a cultura, pois que utiliza um termo da ilha açoriana de Santa Maria para substituir, evocando-o, o nome canário gofio). Ainda aqui, a subalternização da paisagem, da natureza, em benefício da dimensão humana e cultural.
Desde finais de Setembro, o site da internet que mais visitei, e várias vezes ao dia, não se ocupava de literatura ou de teoria da literatura, nem de poetas ou poesia. Era um site de ciência, intitulado Volcanes y Ciencia Hoy (https://www.facebook.com/Volcanes y Ciencia Hoy/). Através dele pude acompanhar a progressão da tragédia física e social que se desenrolava em La Palma, seguindo a informação e a descrição rigorosa avançadas por um «guia» chamado apenas Enrique e que se tornou uma espécie de amigo invisível neste arquipélago a sul.
Perante a natureza das imagens era possível pensar na história geológica das ilhas, na sua origem e formação. Mas sem qualquer espécie de extasiamento: a renovação ou o crescimento da ilha era, neste caso, inseparável da destruição deixada pela lava no seu percurso imparável e cego.
O que estes quase dois meses me ensinaram, entre outras coisas, é que a ciência e a técnica podem descrever ao pormenor a natureza e a dinâmica do vulcão, antever os rumos da lava e o seu andamento. Mas não puderam impedir a sua caminhada nem os seus efeitos destruidores. Estes ficarão decerto para a poesia, a pequena lâmpada de pobre de que falava Nemésio, capaz de iluminar a noite e as cinzas.
Um dia, a literatura, a poesia há-de falar de tudo o que aconteceu em La Palma . E não será, seguramente, no registo das jovens deslumbradas que perante as câmaras da televisão falavam da… maravilha que era o vulcão. Talvez a poesia futura venha a amaldiçoar de novo a ilha, como já no século XV o fizeram as anónimas «Endechas a la muerte de Guillen Peraza», que inauguram a literatura canária.
Por ora, dois textos escritos sob a fúria do vulcão e a ameaça do fogo deixam-nos o registo da tragédia no tom pessoal de quem fala da própria aflição e nele inclui o sentimento de perda, o pesadelo daqueles que não tiveram voz para falar disso. Diario de un volcán e Diario de un volcán II , de Lucía Rosa González, foram escritos com o pavor e o espanto de quem vê avançar «o monstro» imparável e sabe que na sua frente desaparecem os trabalhos de muitas vidas, os gestos que garantem a religação social, de quem sabe, finalmente, que nas casas soterradas se perde muito mais do que o abrigo contra as ameaças e os perigos do mundo, «porque las casas no son cosas, son el alma de las cosas; el alma de quien las ama. Los cultivos, la esencia de las casas.»
São dois textos sobre La Palma não filtrados pela distância nem por qualquer nostalgia . Guardo-os como os primeiros textos sobre La Palma-2021 e como exemplos de um outro modo ainda de dizer a ilha.
Entre o paraíso imaginário de Antero e a dureza da vida em Pedro da Silveira, há ainda a ilha-inferno, de que os textos de Lucía Rosa González nos deixam os sinais e o registo imediato.

Urbano Bettencourt
Ponta Delgada, 26.10.2021

Lido em Las Palmas de Gran Canaria, no IV Encuentro Internacional de Poesía, a 5.11.2021

FOTO: El Correo

LEONS BRIEDIS

(16.12.1949–01.02.2020)

Uma mensagem da minha amiga Katharine F. Baker trouxe-me a notícia de que falecera em Riga (Letónia) o nosso amigo Leons Briedis, escritor e editor.  O mais estranho, neste mundo em que tudo se encontra  à  distância dum clique,  é que essa morte ocorreu em Fevereiro do ano passado e só agora soubemos dela.

O currículo de Leons Briedis é impressionante, quer como poeta e ensaísta, quer igualmente como tradutor de uma diversidade de línguas, entre elas a portuguesa. Pessoa, Eugénio de Andrade, Sophia de Melo Breyner, Manuel Alegre, Luís Miguel Nava, poetas brasileiros, angolanos, moçambicanos, santomenses foram objecto do seu trabalho.

E ocupou-se em particular de poetas açorianos, graças à intermediação  de José Manuel Rebelo. Tendo  «entrado» pelo Porto,  Leons Briedis  bateu à porta certa, ao contrário de um outro tradutor que foi parar  à porta errada em Lisboa, onde o informaram  de que nos Açores não havia escritores…moravam todos na capital.

Em resultado do seu interesse e do seu trabalho, foram editadas na Letónia  a antologia de poesia açoriana «Azoru Salu» (em cuja  selecção de autores colaborei) e ainda uma outra de Eduíno de Jesus, «Karalis Meness».

No final de Outubro de 2009, o Leons participou em Ponta Delgada no  encontro Escritas dispersas-Convergência de afectos, promovido pela Direcção Regional das Comunidades e que reuniu escritores açorianos e seus tradutores e editores. O poema «Ponta Delgada» é um  eco dessa  experiência.

https://www.rtp.pt/acores/comunidades/poemas-ineditos-de-leons-briedistraducao-deurbano-bettencourt_40384

https://www.rtp.pt/acores/comunidades/ponta-delgada-and-repetition—leons-briedis_40393

………

Na foto (de John J. Baker):

Lúcio Gil, Leons Briedis, Lélia Nunes e Irene Blayer (Ponta Delgada, 2009)

Poetas del mismo azul / Poetas do mesmo azul

 

Em memória de Pedro Mireles:
meu aluno de Literatura Açoriana em 2002-2003,
meu amigo de longas conversas
que me trouxe novas e livros
das suas ilhas Canárias

 

Em 1986, o poeta e investigador açoriano Pedro da Silveira (1922-2003) publicou Mesa de Amigos,  um livro onde reuniu algumas das suas traduções de poesia realizadas durante cerca de trinta anos: ao todo 59 poetas pertencentes a seis diferentes línguas – a  chinesa, a italiana, a francesa, a catalã, a castelhana e a galega.

No «Posfácio», e à maneira  de aviso dirigido à navegação interna,  escreveu o tradutor:

Aos leitores açorianos, incluídos  os também poetas, faço  notar a presença de um poeta das ilhas Canárias, Alonso Quesada, que foi lá, com Tomás Morales, dos maiores da sua geração, a do Modernismo hispânico. Nem ele nem Morales foram conhecidos entre nós no tempo em que publicaram as suas obras, o que, a ter-se dado, talvez houvesse contribuído a não termos, nessa altura, a pobreza de vida literária que tivemos. E já agora acrescento que mesmo hoje nos seria assaz benéfico estarmos atentos à tão viva vida cultural das Canárias – tão viva pelo que toca à criação poética como à ficção, ambas de acentuada marca local mas de olhos sempre atentos ao mundo, e ainda no campo das artes plásticas. Na poesia, Quesada e Morales têm antecessores notáveis, e os sucessores, de Luiz Alvarez Cruz aos surrealistas (o manifesto dos surrealistas canários apareceu em 1935!) e posteriores poetas, também são muito dignos de se conhecerem, de os conhecermos neste outro arquipélago do Atlântico. Estarmos em dia com certas borundangas importadas de Lisboa ou, por via de Lisboa, com o que teimam lá em importar de França, não só não basta como, pior!, serve a tornarmos à indigência de antes de Nemésio. (Silveira, 1986: 207-208)[1]

 

Torna-se fácil compreender a advertência do poeta, se tivermos presente a atenção crítica que sempre revelou em relação à situação literária dos Açores, uma atenção crítica que, por outro lado, também o levou a procurar outros espaços culturais com os quais os Açores pudessem ter algo em comum e de cuja experiência pudessem partilhar, enriquecendo-se. Neste sentido se integra a referência às Canárias, como se integrava já o contacto muito próximo que manteve com a literatura e os escritores de Cabo Verde a partir dos anos quarenta do século passado, lendo-os, escrevendo sobre eles e levando-os mesmo a colaborar na imprensa açoriana desse tempo. 

Esta atracção por espaços culturais situados na margem das metrópoles de referência, ou, dizendo de outra maneira, a transformação das chamadas periferias  em centros, não será totalmente alheia a pressupostos de natureza política, que justificariam uma análise em momento mais adequado. Numa  perspectiva ligeiramente diferente, poderíamos ainda ver nesta sedução pelas ilhas e pelas suas culturas uma espécie de projecção, no campo concreto, daquilo que, no plano «teórico», se exprimia como princípio organizador da «Arte Poética» que abre o seu livro Sinais de Oeste (1962): «O meu desejo abarca as ilhas todas do  Mar» . Esta é a  manifestação de uma inquietação e de uma curiosidade, aqui metaforicamente erotizadas, que impelem o poeta à errância  e à deriva verificáveis nesse livro e nos posteriores, através de uma dispersão e circunstancialidade temáticas que contrastam com a coesão e o carácter programático do seu livro de estreia, A Ilha e o Mundo (1952).

Por último, esta convocação do caso das Canárias (e, já antes, de Cabo Verde) como  referência a ter em consideração por parte dos açorianos é o reconhecimento implícito da superioridade ou prevalência da condição insular  sobre as razões administrativas e   políticas que ditaram os diferentes rumos dos arquipélagos atlânticos. Ao mesmo tempo, essa convocação  traduz a consciência de que na realidade cultural desses arquipélagos poderemos encontrar alguns  elementos de identificação, resultantes não apenas do comum lastro ibérico que neles sedimentou, mas também consequência  de uma idêntica condição   geográfica e do facto de alguns idênticos fenómenos do devir histórico se poderem exprimir em formas simbólicas que representam os modos, eventualmente afins, de o homem equacionar a presença no mundo, a sua relação com o espaço e com o outro[2] — a emigração é um desses fenómenos e por isso me parece sempre tão próxima e familiar a crónica «Los emigrantes en la noche», de Alonso  Quesada (1988: 149-150).  Aliás, esse remoto fundo ibérico poderá explicar o facto de que Pedro da Silveira tenha trazido para título da sua poesia completa (2019) o verso «Fui ao mar buscar laranjas» do cancioneiro popular açoriano,  sem saber que nas Canárias já em 1959 Pedro García Cabrera se servira de uma estrofe equivalente como ponto de partida do seu livro La esperanza me mantiene e dessa mesma estrofe retiraria igualmente o título para a sua antologia poética de 1980, A la mar fui por naranjas[3].

De tudo isto, resulta a importância de que, para o poeta, se revestiria o contacto e o aproveitamento da experiência de outros espaços e culturas que, podendo diferenciar-se na sua realidade sócio-cultural e  mesmo linguística, acabam, todavia, por aproximar-se em virtude de afinidades resultantes de uma remota aproximação histórica e de uma comum condição geográfica, de uma percepção do mundo daí decorrente e que literariamente se exprime.

Creio que a escolha de um título como «Culturas del mismo azul» para dar cobertura a uma série de conferências sobre os  arquipélagos da chamada Macaronésia e, mais restritamente ainda, o de «Poetas del mismo azul»,   se insere, de alguma maneira, nessa linha de pensamento que pretende sobretudo pôr em evidência os pontos de contacto e   convergência de culturas e poéticas que o mar  desuniu mas também  uniu; até porque,  mesmo na configuração semântica desses dois títulos, um olhar mais crítico poderia eventualmente  questionar a  abrangência de um modificador como «mismo» e a possibilidade de ele envolver em idêntico  grau de referência os quatro espaços insulares e as suas culturas. É certo que Cesária Évora, um pouco  mais a sul, em Cabo Verde,  imortalizou a canção crioula «Mar Azul», que Los Sabandeños trouxeram para o universo musical e linguístico das Canárias sem necessidade de traduzir ou alterar o título,  mas também é  verdade  que essa canção não foi adoptada em nenhum dos outros dois arquipélagos;   no que respeita aos Açores, aliás,   a canção tornada quase um  hino oficioso e colectivo  intitula-se precisamente «Ilhas de Bruma» —  expressão do domínio corrente a que Vitorino Nemésio (1901-1978) deu  feição literária  pessoal  em «Brumolândia» (Nemésio, 2002: 49-52),  uma narrativa em que a realidade histórica e humana dos Açores se condensa no singular   território  mítico  que Miguel de Unamuno designou como  «una isla anteriana»[4].

Dito isto, torna-se claro que, nesta minha  primeira e breve  abordagem de conjunto a alguns poetas e poéticas insulares, o meu ponto de vista é o de quem prefere concentrar-se  nas  afinidades e nas aproximações possíveis, embora sem recusar  as  diferenças naturais, na convicção de que a diversidade é também um factor  de enriquecimento. E faço-o  naturalmente a partir de um «lugar central» açoriano, pois é o que me está mais próximo e de onde vejo e leio  o mundo. 

****

Apesar de referi-lo tão positivamente, Pedro da Silveira, não traduziu nenhum poema de Tomás Morales;  todavia, passou para língua portuguesa quatro poemas de Alonso Quesada (1886-1925): «Oración de media noche»,  «El balance» e «Tierras de Gran Canaria»  (recolhidos em El lino de los sueños) e ainda um fragmento do  «Canto Segundo» do Poema truncado de Madrid  (exactamente o que vai do verso 30, «suena un reloj», até ao verso 61, «un inglés. Y un inglés ya es algo»).

Sem querer  transformar-me aquí em juiz de intenções alheias, mas, tendo em conta a própria poesia de Pedro da Silveira e os seus conhecidos posicionamentos intelectuais, creio poder pensar que nesta selecção dos poemas de Quesada terá pesado, por um lado,  o nítido distanciamento irónico em relação às culturas inglesa e peninsular madrilena (em «El balance» e  «Canto Segundo»  respectivamente) e, por outro lado, a marcada expressão de insularidade atlântica de «Tierras de Gran Canaria» (aqui na  tradução de Pedro da Silveira):

 

Terras da Grã Canária, tão sem cor,
secas!, na minha infância luminosas.
Montes de fogo, em que senti outrora,
na adolescência, a ânsia de outros lares…!
Campos, areais, a solidão eterna;
– profundo meditar de quanto existe –.
O sol dando de chapa nos penhascos
e o mar… como um convite ao impossível!
Todos se foram! Eu, só e desnudo,
sobre uma rocha, frente ao mar, espero
o amanhã, o Outro…!
                                  Horas amadas
não nascidas ainda! Ânsia secreta
dessa perfeita orientação humana…

Terra de mar, distanciada  – sempr
cheia de luz para os meus olhos crédulos  –,
em seus campos sem cor minha alma agora
bebe um eco enganoso do Deserto…
Vogam no azul remoto  os meus ideais
tão invisíveis neste entardecer
como as claras estrelas… E no entanto
além brilhando estão eternamente!

Campos da Grã Canária, tão sem cor,
secos!, na minha infância luminosos…
Montes de fogo, em que senti outrora,
na minha adolescência, a ânsia de outros lares…!
Ermos, isolamento, pesadelo…
O coração sempre num ponto misterioso
e a alma sobre o mar, branca…! O veleiro
que não passa jamais do horizonte…!

(Silveira, 1986: 95-96)

Ao leitor açoriano que eu era, não me surpreendia, então, a natureza da paisagem que o poema me revelava, com os seus signos de terra seca, árida, pelada[5] — tão diferente daquela a que eu estava habituado, e    mais próxima, afinal, da paisagem literária de Cabo Verde, a que ganha dimensão a partir do modernismo de 1936 (o da revista Claridade). O que despertava a minha atenção era, sobretudo, a natureza da «situação poética» aí configurada: a ilha como centro de onde fala o poeta, um espaço limitado, em contraste com a ilimitação e a infinitude do mar; a importância do olhar que permite ao poeta contemplar o mar e, imaginariamente, transportar-se para os mundos que ele promete e deixa adivinhar  – «en el horizonte está la promessa», diz García Cabrera (1991: 302), a partir de Ortega y Gasset – ,   mesmo que o poeta permaneça imóvel, numa atitude de  espera, de certa maneira aprisionado no seu espaço físico; e ainda a presença concreta do mundo na imagem inalcançável do veleiro que passa no horizonte, mas não se aproxima.  Em resumo: isolamento, solidão de ilha, presença-ausência do mundo, lonjura, lejanía (para utilizar o termo castelhano que se me tornou particularmente grato desde que o encontrei nos textos de Enrique Vila-Matas sobre os Açores).

Ora, na sua formulação sintética, estes são alguns dos traços que permitem descrever uma das grandes linhas temáticas da poesia açoriana, e cujas grandes coordenadas podem encontrar-se nas formulações daquilo que designaremos como o pensamento insular de Vitorino Nemésio.

Num texto em que se ocupa do poeta Roberto de Mesquita, Nemésio utiliza determinados elementos discursivos e conceptuais que evocam inevitavelmente o poema de Quesada: «Tomo aqui a palavra “isolamento” no seu sentido etimológico: solidão de ilha. Um homem numa rocha e em volta o mar» (Nemésio, 21970: 131).  O texto foi publicado inicialmente na década de 30, mas esta interpretação da condição insular  vinha já da década anterior, numa conferência de 1928 intitulada «O Açoriano e os Açores», em que a relação ilha/mar se equacionava nos seguintes termos: «as ilhas são o efémero e o contingente: só o mar é eterno e necessário» (21995: 101). E haveria de prolongar-se em textos mais tarde  reunidos em Corsário das Ilhas (1956), que trazem novos aprofundamentos à dualidade ilha/mar (e à sua projecção na psique humana). Partindo da constatação da estreiteza física que limita e circunscreve o homem islenho, Nemésio contrapõe, todavia,  que «ninguém mais do que ele, a não ser talvez o homem da planície, possui o instinto da amplidão. É com os  próprios olhos  que tiramos do mar a terra que nos faltou»; e esta função complementar, mas intrínseca e vital, do olhar, necessária mesmo à sobrevivência íntima, exprimia-a Nemésio ao referir-se logo depois à «espécie de divisa do destino islenho — que é vigiar, velar.» (21998: 62)[6].

Ora, toda a reflexão de Nemésio se desenvolve em torno de  um ponto central  que é o da descrição da condição humana nas ilhas e encontra o seu momento nuclear  num texto de 1932 em que Nemésio pela primeira vez regista o termo açorianidade e escreve: «A geografia, para nós, vale outro tanto como a história e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes. Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos olhos mergulham no mar.»

Entre a expressão literal e a linguagem metafórica,  uma vez mais  se assinala  a íntima ligação entre o espaço e o homem, o vínculo indissociável entre o homem, a ilha e o mar, que a poesia se encarregará de explicitar sob diferentes perspectivas ou percepções.

 

****

Roberto de Mesquita (1871-1923) pode hoje ser considerado um dos fundadores da açorianidade literária, «o primeiro poeta que exprime alguma coisa de essencial na condição humana tal como ela se apresenta nas ilhas dos Açores», escreveu Nemésio no já referido texto de Conhecimento de Poesia. Ora, essa «coisa essencial» é a forte consciência das limitações impostas pelo «mundo abreviado» da ilha: solidão,  isolamento, mas também o peso do tempo, a acção do clima baço e húmido que «empana as perspectivas» e ameaça asfixiar o sujeito poético, isolado ele próprio no meio dos outros homens. Muito antes de os franceses instalarem uma base aérea na ilha das Flores, já o spleen de Baudelaire aí chegara e se insularizara, na voz de um poeta que praticamente passou toda a vida confinado aos estreitos limites da sua ilha; isso é particularmente notório no poema «Spleen», de que se transcreve uma estrofe:

Olho em torno de mim: as cousas mesmas
Têm um ar de desgosto sem remédio...
E as horas vão, morosas como lesmas,
Rastejando por sobre o nosso tédio.

(Mesquita, 2016: 54)

É a lentidão,  a monotonia e o sem-sentido da vida nos pequenos espaços, ainda mais acentuados  nos tempos de ócio, como nos dias santos, que dão título a um poema de Mesquita.

Mas, num outro plano, a solidão poética de Mesquita torna-se «solidão atlântica», experiência de uma distância e de uma lonjura insuperáveis, porque entre o poeta e o mundo situa-se o mar intransponível. Tal como em «Terras da Grã  Canária»,  também em Mesquita o barco no horizonte não se aproximará jamais da ilha, é apenas uma visão fugaz e transitória, que, após a sua passagem,  deixará o poeta de novo entregue ao silêncio, ensimesmado; mas, do ponto de vista  subjectivo, em pior situação: porque esse momento fugaz de movimento e eventual contacto com o mundo não passa disso mesmo, de algo ilusório, de uma expectativa   frustrada. Daí também o forte sentimento de exílio,  a nostalgia de um lugar outro para lá do tempo, de uma pátria perdida mas inalcançável, porque de contornos indefinidos, como no remate, de notória incidência baudelairiana, do poema «Exilado»: «Saudade dum país mais vago do que um sonho/ E que eu nunca hei-de ver, nem sei onde se oculta.» (Mesquita, 2016: 139). Na sua  articulação semântica, o soneto de Mesquita constrói-se  sobre a «dupla condição» de que fala Antonio Prete – «presencia y separación del antes, lejanía y obsesión por el otro lugar» (2010: 130) – mas também no confronto entre o exilado propriamente dito e o poeta. Se ao desterrado é própria a nostalgia de um tempo anterior vivido num espaço determinado, ao poeta (exilado na própria terra) cabe o algures, o outro lugar, «representación de una lejanía que respira en el verso, en el deseo convertido en ritmo y lengua» (Prete, 2010: 30).  

Há na poesia de Mesquita   uma inquietação insular que se exprime por uma forte dialéctica entre a limitação da ilha e a ilimitação do mundo — entre o cárcere e o infinito, como escreveu José Martins Garcia —  uma dialéctica que sustenta o desejo de uma viagem nunca realizável, pois ao mesmo tempo que incita o sujeito lírico a projectar-se para além, o mar prolonga e reforça a solidão da ilha, as «grades da prisão»[7] insular projectam-se no mar, tornando-o intransponível: basta atentar nas metaforizações e  processamentos  subjectivos como «mar de metal», «[o mar] parece-me um deserto», «é um Saará de estanho o mar paralisado». É   um mar que repele e provoca o afastamento do poeta.

Neste jogo de aproximações e diferenciações, poderíamos introduzir aqui a referência ao poeta canário   Saulo Torón (1885-1974). Em alguns dos seus textos encontramos também uma forte expressão do peculiar tempo insular, do tédio e do aborrecimento detectáveis na poesia de Mesquita; poemas como «Lo irremediable»,  «Domingo provinciano» ou mesmo «Partió la nave blanca» e a sequência «Las ultimas palabras» transmitem a sensação de estreitamento físico, de rotina e sem-sentido  dos meios pequenos e a que acresce a circunstância insular. Mas em Torón o desejo de evasão e de partida parece projectar-se num objecto mais concreto e alcançável que o de Mesquita, marcado este por um forte pendor abstractizante.

Onde os dois poetas se afastam notoriamente é no momento em que a poesia de Torón tematiza pequenos acontecimentos do quotidiano individual ou insular e sobretudo quando se abre à ostensiva celebração marinha que percorre uma obra como El Caracol Encantado e sustenta o sujeito poético que nela se exprime: «El mar es a mi vida / lo que al hambriento el pan…» (1988: 93).  Esta essencialidade do mar, a sua necessidade vital, vamos encontrá-la,  não em Mesquita, mas em Vitorino Nemésio: no plano «teórico» e geral no já referido texto «O açoriano e os Açores», onde o autor se ocupa  do modo de ser insular e afirma que «a alma do ilhéu exprime-se pelo mar. O mar é não só o seu conduto terreal como o seu conduto anímico» (a metáfora de natureza alimentar aproxima esta formulação dos versos de Saulo Torón). E em termos «práticos», a poesia de Nemésio, escrita à distância, fora do arquipélago, fará do mar o seu próprio «conduto» e meio de regresso ao tempo e ao espaço perdidos da infância.

Talvez em nenhum outro poeta açoriano voltemos a encontrar, como em Mesquita, um tão intenso processo de subjectivação do mundo exterior, a fusão do objectivo no subjectivo, do externo no interno. Isso não  significa que a poesia  posterior se desvie em definitivo da expressão da condição insular, simplesmente fá-lo já num registo de maior e mais diversa referencialidade  e objectivismo e num registo em que a intimidade do «eu» lírico recua sobre a superfície do texto; além disso, e aos poucos, a poesia vai chamando a si elementos de uma história mais colectiva, menos individual.

Essa abertura da poesia a uma dimensão manifestamente mais colectiva e social torna-se particularmente notória na poesia de  Pedro da Silveira, também ele um poeta da ilha das Flores. A inquietação insular subjectiva de Mesquita dá lugar, em meados do século XX, a uma outra faceta mais histórica no livro A Ilha e o Mundo (1952);  nesta obra tornam-se mais explícitas as motivações da dialéctica entre o interior e o exterior, entre a ilha e o mundo, isto é, mais concretas e identificadas, localizadas no tempo e enquadradas nas respectivas circunstâncias espaciais e sociais: os «olhos extasiados» de Mesquita dão lugar aos «olhos de fome», o anterior desejo de evasão transforma-se aqui em emigração forçada, e o «país mais vago do que um sonho» adquire um rosto concreto e palpável que tem o nome de América.

Num poema que constitui praticamente a abertura desse seu livro, Pedro da Silveira condensa de forma exemplar a condição insular nas suas vertentes geográfica, humana e histórica:

                           ILHA

Só isto:
          O céu fechado, uma ganhoa
Pairando. Mar. Um barco na distância:
Olhos de fome a adivinhar-lhe à proa
Califórnias perdidas de abundância.

                                                       (2019: 57)

Aproveitando o que escreveu Jorge de Sena em relação à poesia do cabo-verdiano Jorge Barbosa (1902-1971), pode dizer-se que também a  poesia de Pedro da Silveira procede à «dignificação das tragédias vulgares, monótonas e contínuas», veja-se como, através de um descritivismo objectivo, ela regista as situações e os gestos de uma vivência marcada pela pequena escala dos acontecimentos quotidianos num tempo que parece suspenso, mas sem perder de vista a memória das contingências históricas, o abandono e o isolamento a meio do Atlântico;  com essa poesia  surge também a presença próxima dos navios, a agitação do porto no dia de vapor, mesmo que a sua raridade justifique a expressão «dia de São Vapor» — os navios surgem neste contexto como o «hífen periódico»,  o traço de união entre a ilha e o mundo (para utilizar mais ou menos uma expressão de Nemésio). Os navios levam e trazem pessoas, notícias, sinais da existência de um mundo concreto para lá do horizonte; e se o  Norte mantém a sua posição no mapa do mundo, na cartografia poética as viagens fazem-se agora noutra direcção: as viagens de Mesquita, apenas imaginadas e voltadas para «o decantado Oriente», cedem o lugar às viagens reais para Ocidente. O mar é agora caminho de liberdade, ao menos  para quantos puderam enfrentá-lo e vencê-lo; para os outros, «os que ficam parados» (Silveira, 2019: 72), o mar continuará a ser a prisão sem grades, tão mais doloroso quanto na sua voz chegam os ecos do mundo mais vasto, a sedução do longe e dos sonhos que desperta. Afinal, é o mar «que  nos dilata os sonhos e nos sufoca os desejos», como escrevia  Jorge Barbosa no seu livro inaugural, Arquipélago,  de 1935.

Por aqui  se cruza alguma poesia açoriana com a cabo-verdiana, com a daqueles poetas agrupados em torno da revista Claridade, e de que  a poesia primeira de Pedro da Silveira recebe um  impulso fundamental.

A Claridade surge como um projecto e com «programa» delineado que era o de «pensar o problema de Cabo Verde», e não admira por isso que a poesia (mas também a narrativa)  dos seus fundadores (Baltasar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa) se integre naturalmente nesse projecto e se torne veículo da expressão estética desse «problema»: sobre a dualidade ilha/mar ganha dimensão o sentido  do destino colectivo, de homens  flagelados por  uma natureza árida e adversa que os escorraça da ilha e os empurra para longe. O «problema» é de natureza social e assenta em razões de ordem geográfica, e histórica e política também, como se diz às vezes nas linhas do poema, outras vezes nas entrelinhas;  daí,  a forte dramatização da condição insular, o sentido trágico da existência, a luta do homem contra uma força superior, a da natureza. Por isso, não encontramos nesta poesia uma celebração ufanista da paisagem física; mesmo quando o descritivismo se ocupa desta, ela  é  sempre vista em função do homem: as secas, a fome daí resultante, a «desumanização do homem». A partida, a fuga, ou apenas o desejo disso, constituem, pois, tópicos que surgem aí  como uma consequência natural. A «inquietação marítima» de que fala o ensaísta cabo-verdiano Gabriel Mariano e que atravessa a poesia de Jorge Barbosa traduz «o desassossego do Mar»: o mar literal, concreto, que leva os homens para a terra-longe da emigração, e o mar íntimo com as suas vozes que apelam à partida, à evasão.

Na dialéctica entre o partir e o ficar, entre os que partiram e os que ficaram, a viagem não deixa, todavia, de assumir aspectos positivos, ao tornar-se factor de conhecimento e descoberta do mundo, aprendizagem do outro e da diferença. Mas em «Poema de quem ficou», Manuel Lopes (1907-2005) afirmará a superioridade e a maior dimensão dos mundos sonhados, antevistos, por relação aos realmente observados e experimentados:




Eu não te quero mal
por este orgulho que tu trazes,
por este ar de triunfo iluminado
com que voltas...

O Mundo não é maior
do que uma pupila de teus olhos
— tem a grandeza
das tuas inquietações e das tuas revoltas.

...Que teu irmão que ficou
sonhou coisas  maiores ainda,
mais ricas, mais belas
que aquelas que conheceste...
Crispou as mãos à beira do mar
e teve saudades estranhas de coisas estranhas
com bosques, com  rios,  com outras montanhas.
— Bosques de névoa, rios de prata, montanhas de oiro —
que nunca teus olhos viram
no mundo que percorreste...
                                       (Santos-Lopes, 1997: 42)[8]

 

Por este caminho, poderemos chegar de novo a Nemésio e ao seu já citado fragmento de Corsário das Ilhas. E talvez nos cruzemos ainda com Saulo Torón e o seu mar , «campo azul para todas las siembras del sueño» (1988: 105). Se assim for, então terá valido a pena convocar estes poetas do azul, mesmo que o azul possa ganhar diferentes tonalidades entre o Norte e o Sul.

 

(Texto ampliado da conferência proferida  em Outubro de 2004 no Ateneo de La Laguna e no âmbito do seu centenário)

…………………….

 NOTAS

[1] Este fragmento  foi suprimido na segunda edição (Lisboa, Assírio & Alvim, 2002)..

[2] Jesús Páez Martins  chama também a atenção para estes aspectos na sua comunicação «A-isla-miento: mar y océano en la literatura de Canarias» (2001).

[3] A quadra de García Cabrera, de que existem variantes em língua espanhola,  é a seguinte: A la mar fui por naranjas,/ cosa que la mar no tiene; / metí la mano en el agua,/ la esperanza me mantiene (Padorno, 2006: 154). A versão    açoriana, utilizada por Silveira como epígrafe do seu livro : Fui ao mar buscar laranjas,/que é cousa que lá não tem;/ fui enxuto e vim molhado,/nem siquer vi o meu bem.

[4] Carta a Vitorino Nemésio (9 de Maio de 1929), cf. Vitorino Nemésio. A Rotação da Memória,  Doc. 254.

[5] «En Gran Canaria hay un predomínio del paisaje seco, sahárico. Paisaje de piel y entraña ascética. (…) Poemas de “Quesada” áridos, sí, como las cumbres de Gran Canaria, como aquellas tierras calcinadas»– escreveu o poeta Pedro García Cabrera em 1930 (1991: 307). Neste contexto, e numa perspectiva mais ampla, pode ler-se com imenso proveito o texto de Pérez Minik  «La Condición Humana del Insular»  (2004, Vol I: 45-60), que permite a aproximação a alguma reflexão açoriana sobre o mesmo assunto.

[6] Um dos corsos de Nemésio diz respeito às Canárias e ocupa três  capítulos, pp. 225-235.

[7] Veja-se o soneto «Às grades da prisão», que reescreve o poema  «Os cativos», de Antero de Quental.

[8] No poema «Para ti que ficas parado», de Pedro da Silveira, que mantém nítidas afinidades com o de Manuel Lopes e em particular  com a última estrofe, a ênfase é posta igualmente na capacidade de sonhar, de imaginar mundos, por parte daqueles que nunca viajaram sequer à ilha mais próxima; em Silveira,  e num registo enunciativo muito  próprio de A Ilha e Mundo,  o poema remata com   o endosso da voz solidária do poeta: «Para ti, irmão, / camponês e marinheiro da minha ilha, /  – a esperança do meu canto.» (2019: 72).  

REFERÊNCIAS

GARCÍA CABRERA, Pedro (1991), «El hombre en función del paisaje» (1930), in Nilo Palenzuela, El primer Pedro García Cabrera. Las Palmas: Cabildo Insular de Gran Canaria (1991), pp.300-310.

MESQUITA, Roberto de (2016), Almas Cativas e Poemas Dispersos, prólogo e organização de Carlos Bessa. Lajes do Pico: Companhia das Ilhas.

NEMÉSIO, Vitorino (21970), «O Poeta e o Isolamento: Roberto de Mesquita», Conhecimento de Poesia. Lisboa:  Editorial Verbo.

_____________(31998), Corsário das Ilhas.  Obras Completas, Vol. XVI,  introdução e fixação do texto de A. M. B. Machado Pires. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

_____________ (22002), Paço do Milhafre. O Mistério do Paço do Milhafre. Obras Completas,  Vol. VII, introdução e fixação do texto de Urbano Bettencourt. Lisboa:  Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

PÁEZ MARTINS, Jesús (2001), «A-isla-miento: mar y océano en la literatura de Canarias», in AAVV (2001), Livro de Comunicações do Colóquio «Caminhos do Mar»,  realizado no Funchal em 2000. Funchal: Câmara Municipal

PÉREZ MINIK, Domingo (2004), «La Condición Humana del Insular», Isla y Literatura, edição de Rafael Fernández Hernández. Santa Cruz de Tenerife: Caja Canarias, vol. I,  pp. 45-60. (O texto corresponde a uma conferência proferida em 1968). 

PRETE, Antonio (2010), Tratado de la Lejanía. Valencia: Universidad Politecnica de Valencia.

QUESADA, Alonso (1988), Insulario, edición de Lázaro Santana, col Biblioteca Básica Canaria. Islas Canarias: Viceconsejería de Cultura y Deportes Gobierno de Canarias.

SILVEIRA, Pedro da  (1986), Mesa de Amigos. Versões de Poesia.  Angra do Heroísmo: SREC.  

_____________ (2019), Fui ao mar buscar laranjas. Poesia Reunida. Angra do Heroísmo: Instituto Açoriano de Cultura.

TORÓN, Saulo (1988), Poesía Completa, prólogo de Juan Manuel Bonet. Santa Cruz de Tenerife: Editorial Interinsular Canaria.

Nota Psicográfica

Ernesto Gregório ainda não tem biografia. E nada garante  que  venha a ter.

A biografia, na verdade,  é a construção  mais anedótica  dos bons escritores (dos outros,  pouco se sabe), oscilando entre a predestinação divina para uma carreira literária e a vitimização continuada   de quem,  desde o berço, teve de vencer barreiras para ganhar um lugar no arraial mundano das escritas.

Ernesto Gregório não se situa em nenhum desses campos, lamentavelmente!

É um escritor tardio,  que apenas  se manifestou quando percebeu  que já tinha lido o suficiente para não se meter a   largar  prosa gaga pelos cantos. Por outro lado, como se apoia nessas desvairadas leituras dos mais variados mestres, entrou na praça literária com a tranquilidade de quem se sente  bem escorado à esquerda e à direita e também ao centro.

Colocando a questão em termos clínicos, digamos assim, não podemos afirmar  que Ernesto Gregório seja um «enfermo de literatura», pelo menos no sentido  em que Enrique  Vila-Matas usa a expressão. Trata-se, principalmente, de um autor para quem a literatura é sempre um jogo de aberturas e alçapões da linguagem. A missão da arte, neste caso,  é dar a ver  claramente vistos esses alçapões, esquartejar e perverter  os textos para que não  pareçam  a forma da alma que os procura, como escreveu a poetisa; daí as citações, as alusões, as paródias,  os decalques e as  paráfrases que atravessam os seus textos. É,  em todo o caso, um processo transparente e às escâncaras, bem diferente do plagiador clássico,  caracterizado  pelo seu modo de acção  sub-reptício e manhoso  (mascarado, para utilizarmos um termo de contexto actual).

Mas Ernesto Gregório filia-se ainda na conhecida linhagem de autores para quem «todo o escritor é um espião»: ele observa, escuta e faz o seu relatório ou (quando isso não acontece) inventa, à  maneira de qualquer espião que se preze – sabe-se como  grandes decisões internacionais assentaram  numa boa dose de invenção e  mentira (daí também o reconhecido facto de alguns  políticos dispensarem os livros e as livrarias, pois já dispõem de  ficções pessoais).

Por tudo isso, Ernesto Gregório é sobretudo  um escritor   de pequenos textos e histórias;  da única vez que se aventurou pelo campo mais extenso  da crítica literária, a coisa saiu-lhe mal, como no livro se comprova. Mui assisadamente,  arrepiou caminho e tornou-se um autor de miudezas. Assim o entenda o leitor inteligente ou   benévolo. 

U.B.

Fevereiro  de 2021