A moldura histórica de A Escrava Açoriana

As duas mais recentes narrativas de Pedro Almeida Maia, para lá das suas diferenças de tempo histórico e respectivos  condicionalismos, do género dos protagonistas, entre outras,  apresentam um ponto em comum: trata-se, em ambos os  casos, de duas fugas para Oeste, esse lugar mítico do imaginário insular  –  e mítico mesmo quando a experiência alheia não era suficiente para dissuadir os que tinham ficado ou, pelo menos, refrear-lhes  o impulso para a partida.

Em Ilha-América (2020),  Almeida Maia parte de «acontecimentos e locais verdadeiros» (informação paratextual)  para construir a história do jovem Mané que em Setembro de 1960 se escondeu no trem de aterragem de um Lockheed Super Constellation e deixou a ilha de Santa Maria rumo a Caracas, com escala nas Bermudas. A história individual permite ainda ao escritor  convocar alguns elementos que ajudam a   recomposição de um  tempo sócio-político,  o do salazarismo  e da fome  insular: «os tempos de pobreza iam acabar», lê-se logo no início do capítulo primeiro (num   registo de discurso indirecto livre, que implica  personagem e narrador).

Diferente é a situação narrativa em A Escrava Açoriana (2022): sobre um fundo colectivo, e no ano de 1873, destaca-se a personagem Rosário,  num contexto de emigração, com enfoque na emigração clandestina  (aquela que, a partir de determinada altura,  se realizava em pleno dia e através do cais de embarque[1], como escreve no século XIX um  historiador jorgense).

É deste fenómeno migratório que pretendo ocupar-me, trazendo alguns elementos  que permitam compreender certos fenómenos  do tempo histórico açoriano em que Almeida Maia enquadrou as suas personagens (o século XIX, com uma «entrada» já nas primeiras décadas do século XX), fenómenos que ajudam a esclarecer a justeza de um título como A escrava Açoriana.

Não sendo um fenómeno exclusivo de oitocentos, a emigração ganha contornos específicos neste tempo: pelo seu peso social e  também pela mudança de destino, com os Estados Unidos a conquistarem espaço ao Brasil.

É fácil encontrar na imprensa alertas sobre as consequências económicas desta emigração  excessiva e descontrolada, embora sem deixarem  de reconhecer a importância das remessas entradas  no arquipélago, sobretudo provenientes dos Estados Unidos. A título de exemplo, Ernesto Rebelo e Manuel Zerbone lançam os seus alertas  nos jornais da Horta e  Mont’Alverne de Sequeira publica em 1891 o  opúsculo A emigração dos Açores, em que analisa o fenómeno migratório nos seus diversos aspectos:  enquanto exercício do direito de circulação e  elemento capaz de «minorar as desgraças do povo nos períodos agudos de crises económicas, que os governos deixaram entregues à própria evolução». (p. 90), embora também factor de desequilíbrios sociais

Com efeito, conhecem-se as crises económicas que, para lá dos desastres naturais (tempestades,  secas),  marcaram a segunda metade do século XIX, com o colapso das vinhas no Pico, (meados do século) e a crise  dos laranjais em  S. Miguel (a partir de 1875).

«Ao longo da década de 50, a população do Pico diminuiu em consequência da grave crise provocada pela doença das vinhas», escreve Maria Isabel João  (Economia e sociedade açorianas em meados do século XIX, p. 77). E se não é de crer que os picoenses se tenham dissolvido no ar, a conclusão a retirar é que a emigração foi a «solução»  por eles encontrada para evitar morrer de fome.

Por outro lado, e no distrito de Ponta Delgada, o incremento  da emigração legal, a partir de 1880 (com o seu auge  nos anos de  1880 a 1883, um total de 14164 pessoas nesses quatro anos), demonstra que nem a construção do porto artificial de Ponta Delgada foi suficiente para absorver o excesso de  mão de obra micaelense.

Ora, estes dois acontecimentos, que aqui funcionam apenas como pontos de referência, não podem fazer-nos esquecer as  «crises alimentícias» que pontuam o século XIX açoriano.

Na sua edição de 27 de Março de 1858, escrevia o Açoriano Oriental: «o brigue Guilherme, trazendo de Viana 9000 alqueires de milho para  a Terceira e achando-se este na actualidade à venda n’aquella ilha a 480 réis, foi immediatamente leval-o á ilha do Fayal, onde está  por um preço muito elevado, e não o há».

A  calamidade não era exclusiva do Faial, pois a 11 desse mês o Angrense noticiava que tinham chegado à Terceira diversos barcos idos de S. Jorge e carregados de gente, «a maior parte da qual vem fugindo à fome, e outra vem comprar cereais.»

Ou seja, o quadro que os Açores apresentam no decurso do século XIX tem as condições suficientes para que a emigração se perspective como a saída possível perante uma  realidade social e económica concreta.

Neste contexto, ganha contornos ainda mais deploráveis aquilo que a imprensa da época designou como a escravatura branca ou tráfico de brancos ou ainda o comércio da escravatura branca. Porque era de comércio que efectivamente se tratava: o transporte de homens e mulheres para o Brasil, onde eram depois arrematados pelos clientes brasileiros (quando tudo corria bem – em caso contrário, ficavam abandonados à sua sorte, melhor dizendo, ao seu azar).

Que se tratava de um negócio do conhecimento público e transversal à sociedade, prova-o o facto de, em Abril de 1858, o jornal O Angrense anunciar que o Comendador António da Silva Baptista decidira afastar-se do «tráfico de escravatura branca» e alugara o seu navio Jovem Artur … para o mesmo fim!  «Não trafica directamente, mas lucra com o tráfico; é o mesmo” – conclui o jornal.

No final desse mesmo ano, o cônsul português no Rio de Janeiro enviou ao governador civil de Ponta Delgada um ofício onde  refere  que  a barca brasileira Dois amigos aportou àquela cidade com «seis centos e doze passageiros, tendo largado o ancoradouro [de Ponta Delgada]  com cento e vinte sete!!!»

Uma simples operação aritmética  permite constatar que o diferencial de 485 é superior ao triplo dos passageiros efectivamente registados, ou seja, estamos perante uma descarada situação de emigração clandestina. Num ofício enviado ao Ministro do Reino em Janeiro de 1859, o governador civil rejeita as acusações de conivência com os embarques clandestinos que lhe são feitas pelo cônsul e afirma que «se este tivera de largos tempos feito as participações que agora começa  a fazer, estes abusos teriam terminado». Aliás, já no seu Relatório de Setembro de 1858, o governador civil dava conta da teia de interesses e dos conluios existentes em torno da emigração clandestina: «privando com os jurados, os donos e os capitães dos navios, os aliciadores e os traficantes zombam, escudados por esta forma na impunidade, das autoridades e levam a sua zombaria ao maior grau de descaro.»

Uma das personagens centrais em todo o processo é, na verdade, o aliciador  ou engajador, descrito em alguma imprensa como o especulador ousado que «aufere pingues lucros d’este inhumano comércio. É certo que por vezes o braço da lei se estende sobre ele, mas a sordidez  do seu comportamento é bem notória na notícia do jornal A Persuasão de13 de Janeiro de 1869: «N’algumas das ilhas do Distrito da Horta (…) os engajadores e mesmo os capitães de navios recebem dinheiro dos que pretendem emigrar, levam-nos até bordo dos navios e depois mandam lançal-os na costa».

Será talvez momento de suspender as referências factuais e darmos alguma atenção aos modos como a emigração pôde ser perspectivada, em termos nitidamente contraditórios que traduzem, afinal, pontos de vista e interesses de teor diferente e até mesmo higienista e de supremacia social.  

Mont’Alverne de Sequeira reconhece a importância económica da «exportação de gente» (p. 90), sobretudo em tempos de crise, e o papel das duas Américas no acolhimento de «milhares de indivíduos do nosso arquipélago» (90), assim contribuindo para minorar a fome e a miséria, graças à entrada de dinheiro, que «traduzia em libras esterlinas as saudades da família» (p.90)

Mas é o mesmo Mont’Alverne de Sequeira que escreve:

«A princípio as duas Américas foram  o vazadouro de tudo quanto por cá havia de mais abjecto na espécie humana, salvando excepções. Purgámo-nos dos malandrins, dos larápios e ineptos. Com o decorre dos tempos (…)a monomania invadiu também os sãos, os válidos, os trabalhadores, e aquilo que até aí foi um benefício e como que uma vassoura desinfectante, tornou-se logo em flagelo, depauperando-nos dia a dia com a brutalidade de um cataclismo.» (p, 89)

Mesmo em textos oficiais é possível encontrar este tipo de discurso, num ofício  do governador civil ao Ministério (10 de Agosto de 1854): (…) por ora esta Ilha por forma alguma se ressente da falta de gente que tem emigrado, sendo certo que grande parte da gente que ultimamente daqui tem sahido, foi um grande serviço prestado a esta ilha que se vio livre de muito vadio e gente de máos costumes, cuja auzência deixou este Districto na mais profunda paz».

E já no início do século XX, A Persuasão (10 de Outubro de 1906) noticiava o embarque de 251 passageiros para as Ilhas Sandwich (o nome histórico do actual Havai), concluindo com a delicadeza de quem pretende manter «limpo» o discurso: «agora, como antecedentemente, esta emigração limpa a nossa sociedade de bastantes impurezas.»

Até que ponto este discurso higienista não denega ou relativiza a confissão do poder público quanto à sua eventual impotência para travar as redes de «exportação de gente» durante o século XIX? Como explicar essa  espécie de indiferença que atinge a sociedade e de que Mont’Averne de Sequeira  nos dá conta?:

«O monstro [o engajador] fica radiante, quando vê o rebanho de infelizes conduzido para bordo como carneiros, que se exportam!

«Tudo se passa nas bochechas das autoridades locais, que são impotentes para barganterias deste quilate. O povo assiste sereno a essas procissões de infelizes, e os grandes homens comentam o facto à noite, à hora das torradas, demonstrando que ele é impróprio da civilização dos nossos tempos, e o espectáculo indigno deste século de eternas luminárias.» (Sequeira, 1994: 104)

Eu não tenho respostas. Estas exigiriam outras leituras extensivas e de conjunto que não se coadunam com o tempo desta comunicação.

Mas se no Relatório da Administração do Distrito de Ponta Delgada para 1861 se escreve que «felizmente  o nefando tráfico da escravatura  branca cessou neste distrito há quase três anos.» (Miranda, 1989: 62), então podemos voltar a fazer mais perguntas:  se foi possível resolver o problema, porquê tanto tempo para fazê-lo? E como explicar  que no início da década de 1890 a emigração clandestina se situe acima das duzentas pessoas por ano no distrito de Ponta Delgada, sendo ainda mais elevada no da Horta?  (Sequeira, 1994:151)

Por isso,  remeto  de novo à Escrava Açoriana e ao modo como aí se constrói uma história ficcional ancorada no conhecimento e nos parâmetros de uma época  açoriana funesta.

Munida de um terço e de um exemplar do  Amor de Perdição surripiado no Convento da Esperança,  Rosário refaz a  percorre a rota  de alguns lugares da emigração açoriana no Brasil, com as suas vicissitudes e desventuras, com as perturbações semânticas de um tempo em que o substantivo ilhoa se tornara sinónimo de prostituta (Ramalho Ortigão tinha escrito sobre essas coisas em 1872). E se Rosário  pôde regressar à ilha (mesmo como outra mulher), isso é ainda um sinal de sorte, uma excepção

No final, já no século XX, quando a história se repetir e a representação literária se entrecruzar com a representação pictórica, quando a história de A Escrava Açoriana se fundir com Os Emigrantes, de Domingos Rebelo, será tempo de concluir que a emigração é uma doença …hereditária.

Urbano Bettencourt

38.º Colóquio da Lusofonia ( Ribeira Grande, 8.10.2023)

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Devo ao meu saudoso amigo e historiador Carlos Cordeiro a cedência da documentação oficial aqui utilizada.

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REFERÊNCIAS

Arquivo Histórico do Governo Civil de Ponta Delgada. Livro de Registo de Correspondência com diversos Ministérios.

MAIA, Pedro Almeida (2020), Ilha-América. Ponta Delgada, Letras Lavadas.

_________________(2022), A escrava açoriana. Ponta Delgada, Letras Lavadas.

MIRANDA, Sacuntala de  (1989), O Ciclo da Laranja e os “gentlemen farmers” da Ilha de S. Miguel. Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada.

SEQUEIRA, Mont’Alverne de (1994), «A emigração dos Açores»,  Questões Açorianas, 2.ª edição. Ponta Delgada, Jornal de Cultura, pp. 87-154. [1894].

Web

JOÃO, Maria Isabel,  Economia e sociedade açorianas em meados do século XIX


[1] Uma breve anotação em A Escrava Açoriana dá contadesta realidade: «No Cais Velho, embarcavam Rosário, Adelaide e mais oito emigrantes ilegais, rumo ao Porto dos Batéis, nas Feteiras. Não cabia mais ninguém naquele boca aberta enjoando a peixe. Mas, no Cais Novo, ali à distância de um olhar, com direito a manobra de bagagem no moderno guindaste a vapor, embarcavam garbosos viajantes e os seus casacos dispendiosos. Por força da ironia, seguiriam todos para o mesmo navio fundeado ao largo do porto.» (Maia, 2022: 48-49)