Falar de ilhas

 – de quais? e como?

«O meu desejo abarca as ilhas todas do Mar.»
Pedro da Silveira, Sinais de Oeste

A epígrafe parece-me congregar os tópicos propostos para este painel: natureza, ilha e poesia. Na verdade, o discurso poético constitui-se o lugar de projecção de uma pulsão desmedida e, no mesmo passo, antecipa-se como o lugar futuro das «ilhas de palavras» que a experiência concreta resgatará à utopia de um pretenso conhecimento absoluto.
A poesia de Pedro da Silveira navegou intensamente em busca dessas ilhas, e na diversidade das suas descobertas ou, antes, dos modos como as soube dizer, abre caminho para um questionamento mais genérico sobre a natureza dessa realidade a que chamamos ilha.
De que falamos, afinal, quando falamos de ilhas? – poder-se-ia perguntar, parafraseando Raymond Carver. De redutos físicos que arrancam da sua referencialidade para configurarem no poema uma concretude histórico-social e geográfica? De territórios perdidos no tempo e no espaço e de que restou apenas um traço na memória ou a que se regressa para reconhecer quão estrangeiro se é na própria terra? De meros pontos avistados no horizonte e supostos na sua intimidade inacessível? De espaços sem geografia concreta, simples construções erguidas com a matéria verbal de que são feitas? Ou, no limite, a ilha como metáfora da própria poesia, da condição insulada da sua génese e criação?
Antero de Quental (1842-1891) sonhou-se algures no Oriente, numa ilha incerta, de cores e perfumes talvez colhidos em Baudelaire, paisagem edénica sobre a qual se recorta uma Eva profana não ameaçada por qualquer serpente e em que um Adão sem criador pode entregar-se livremente a um «cismar sem fim», fechado numa ilha dentro de outra ilha: «Sonho-me às vezes rei, nalguma ilha, / Muito longe nos mares do Oriente (…)» . Em Antero, o sonho é porta para um processo de desdobramento do eu lírico, de projecção num outro e de fuga para um espaço diferente, susceptível de proporcionar experiências para lá do quotidiano concreto. E nesta ilha literária a Oriente havemos de encontrar – e encontrou ele – um refúgio contra o tumulto dos dias, contra a história e as suas contingências.
O poema «Momento» de Pedro da Silveira (1922-2003) abre também com uma inscrição paisagística, em que são detectáveis, no primeiro verso, os traços empíricos da Fajã Grande (ilha das Flores) e do ilhéu do Monchique (o extremo ocidental da Europa):

A baía, o Monchique, o outeiro, as casas…
Batidas do vento as canas são vagas verdes.

De imediato, porém, o discurso introduz um elemento semântico contrastante que reencaminha a leitura para um outro plano:

Mas o que eu vejo não é a paisagem, bela ou feia.
O que eu vejo
são estas mulheres vestidas de preto,
o rosto escondido num lenço preto,
as mãos deformadas de cavar a terra.
Novas, velhas, sem idade.

Sem culpas nem pecados.
Resignadas.

Podemos tomar este poema como uma assinatura e um posicionamento pessoais, na medida em que se anula o foco da contemplação da paisagem para centrar o olhar e a expressão poética no domínio humano e social, procedimento tão mais notório quanto se estabelece em ostensiva oposição ao falso arranque do poema ou ao rumo que pareciam indicar os dois versos iniciais. À distância de 70 anos, o poema contrapunha à futura ideologia turística (hipertrofiada hoje pela profusão tecnológica) a realidade humana e social, a atenção à experiência penosa de uma comunidade, à sua luta quotidiana pela sobrevivência. A dimensão estética é, neste caso, inseparável do compromisso literário com o outro.
O factor histórico e as suas vicissitudes marcam de forma tão impressiva o primeiro livro de Pedro da Silveira, A Ilha e o Mundo (1952), muito focado na ilha das Flores. Mas as ilhas continuarão motivo e objecto poético na escrita posterior do poeta: não só a ilha primeira, cada vez mais distante e perdida, mas também as outras, (re)visitadas, descobertas ou simplesmente avistadas; elas serão objecto de indagação, representadas na sua espessura histórica ou assinaladas apenas no traço cultural que as identifica e singulariza. Um exemplo é o «Aeropoema da Grã Canária» (Silveira, 2019: 307):

Alturas da Grã Canária
ainda há pouco avistada,
cinzento, roxo, castanho…
agora só tenho, azul,
o mar franzido, lá em baixo.

Sei que era a Grã Canária.
Da Grã Canária não sei
nem do seu gofe provei.

Integrado num conjunto intitulado «Ilhas avistadas», a sequência de traços físicos «avistados» é interrompida para registar algo não directamente observável, mas constante da informação do poeta sobre a cultura da ilha, o gofe (trazida transversalmente, a cultura, pois que utiliza um termo da ilha açoriana de Santa Maria para substituir, evocando-o, o nome canário gofio). Ainda aqui, a subalternização da paisagem, da natureza, em benefício da dimensão humana e cultural.
Desde finais de Setembro, o site da internet que mais visitei, e várias vezes ao dia, não se ocupava de literatura ou de teoria da literatura, nem de poetas ou poesia. Era um site de ciência, intitulado Volcanes y Ciencia Hoy (https://www.facebook.com/Volcanes y Ciencia Hoy/). Através dele pude acompanhar a progressão da tragédia física e social que se desenrolava em La Palma, seguindo a informação e a descrição rigorosa avançadas por um «guia» chamado apenas Enrique e que se tornou uma espécie de amigo invisível neste arquipélago a sul.
Perante a natureza das imagens era possível pensar na história geológica das ilhas, na sua origem e formação. Mas sem qualquer espécie de extasiamento: a renovação ou o crescimento da ilha era, neste caso, inseparável da destruição deixada pela lava no seu percurso imparável e cego.
O que estes quase dois meses me ensinaram, entre outras coisas, é que a ciência e a técnica podem descrever ao pormenor a natureza e a dinâmica do vulcão, antever os rumos da lava e o seu andamento. Mas não puderam impedir a sua caminhada nem os seus efeitos destruidores. Estes ficarão decerto para a poesia, a pequena lâmpada de pobre de que falava Nemésio, capaz de iluminar a noite e as cinzas.
Um dia, a literatura, a poesia há-de falar de tudo o que aconteceu em La Palma . E não será, seguramente, no registo das jovens deslumbradas que perante as câmaras da televisão falavam da… maravilha que era o vulcão. Talvez a poesia futura venha a amaldiçoar de novo a ilha, como já no século XV o fizeram as anónimas «Endechas a la muerte de Guillen Peraza», que inauguram a literatura canária.
Por ora, dois textos escritos sob a fúria do vulcão e a ameaça do fogo deixam-nos o registo da tragédia no tom pessoal de quem fala da própria aflição e nele inclui o sentimento de perda, o pesadelo daqueles que não tiveram voz para falar disso. Diario de un volcán e Diario de un volcán II , de Lucía Rosa González, foram escritos com o pavor e o espanto de quem vê avançar «o monstro» imparável e sabe que na sua frente desaparecem os trabalhos de muitas vidas, os gestos que garantem a religação social, de quem sabe, finalmente, que nas casas soterradas se perde muito mais do que o abrigo contra as ameaças e os perigos do mundo, «porque las casas no son cosas, son el alma de las cosas; el alma de quien las ama. Los cultivos, la esencia de las casas.»
São dois textos sobre La Palma não filtrados pela distância nem por qualquer nostalgia . Guardo-os como os primeiros textos sobre La Palma-2021 e como exemplos de um outro modo ainda de dizer a ilha.
Entre o paraíso imaginário de Antero e a dureza da vida em Pedro da Silveira, há ainda a ilha-inferno, de que os textos de Lucía Rosa González nos deixam os sinais e o registo imediato.

Urbano Bettencourt
Ponta Delgada, 26.10.2021

Lido em Las Palmas de Gran Canaria, no IV Encuentro Internacional de Poesía, a 5.11.2021

FOTO: El Correo